Justiça: a verdadeira e as falsas

Vou tecer aqui, especialmente inspirado no artigo "An Untitled Letter", de Ayn Rand, publicado em "Philosophy: Who Needs It?" (A Signet Book, New American Library, New York, 1982, pp. 102-119), algumas considerações sobre o conceito de justiça, especialmente relacionadas ao livro A Theory of Justice, de John Rawls (disponível em tradução brasileira).

O conceito de justiça, segundo Aristóteles, tem que ver com a forma como se distribuem as riquezas de uma sociedade (isto é, os bens e recursos existentes em uma determinada sociedade) — inclusive bens e recursos intangíveis, como reconhecimento, glória, fama. É pressuposto que esses bens e recursos tenham valoração positiva, isto é, sejam desejáveis (sejam vistos como riquezas).

Uma distribuição justa, segundo Aristóteles, é aquela que é feita com base no que cada um contribuiu para a criação ou existência dessas riquezas. Quem mais contribuiu, recebe mais. Quem nada contribuiu, nada recebe. O mundo de fala inglesa tem um verbo de tradução difícil para o Português: "to earn". A melhor tradução desse verbo é "fazer por merecer", "fazer jus a". Uma distribuição justa é aquela em que os bens e recursos vão para aqueles que "earned them", isto é, que fizeram por merecê-los, que fizeram jus a eles, em virtude de sua contribuição para a criação ou existência desses bens e recursos.

Essa visão de justiça é corretamente denominada de retributiva. Uma distribuição justa é aquela que retribui cada um na proporção de sua contribuição para a criação dos bens e recursos existentes em uma sociedade.

Essa visão de justiça, que considero a visão clássica, e que é pressuposta até mesmo nos Evangelhos (na parábola dos talentos), pressupõe que as pessoas são diferentes, tanto por sua dotação genética como pelo contexto e pela forma em que são criadas, em suas qualidades, habilidades, competências, ambição, persistência, perseverança, etc., e, que, portanto, vão contribuir de forma diferenciada para os bens e recursos que vão existir em uma determinada sociedade. Nada mais justo, portanto, dentro dessa visão, que cada um faça por merecer, ou faça jus a, uma cota desses bens e recursos proporcional à sua contribuição para a geração dessas riquezas.

Na época atual se tornou costume defender, porém, o que se chama de uma "nova justiça".

O Papa Paulo VI, segundo divulgou o New York Times de 2 de Janeiro de 1973 (trinta anos atrás), conclamou o mundo a buscar "uma nova justiça". Diz ele (segundo o jornal): "A verdadeira justiça reconhece que todas as pessoas são, em substância, iguais. (…) O que é menor, ou mais pobre, ou mais sofredor, ou mais indefeso, ou mesmo aquele que mais baixo caiu, merece, tanto mais, ser assistido, levantado, cuidado e honrado. Aprendemos isso com o Evangelho" (apud PWNI, p. 103).

É notável como se pode dizer tanto em tão poucas linhas.

Em primeiro lugar, o Papa Paulo VI defende a tese de que "todas as pessoas são, em substância, iguais". O que quer dizer isso? Que têm iguais qualidades? Iguais habilidades? Iguais competências? Igual ambição? Igual persistência e perseverança? Provavelmente ele teria suficiente bom senso para responder que não. Mas no que consistiria então essa "igualdade em substância"? O Papa não explica.

Em segundo lugar, note-se que o Papa coloca num mesmo pacote "o menor, o mais pobre, o mais sofredor, o mais indefeso" — que são categorias que, digamos, não têm conotação moral — e "aquele que mais baixo caiu" — que é uma categoria que certamente tem uma conotação moral. Alguém pode ser pequeno, pobre, sofredor e indefeso em decorrência de fatores sobre os quais não teve escolha. Mas ninguém "cai" (no sentido de "cair baixo na vida") se não for em decorrência de suas próprias ações, pelas quais deve ser considerado responsável. Neste caso, não se trata de, digamos, má sorte, mas, sim, de comportamento imoral.

Em terceiro lugar, note-se que o Papa propõe que todos esses tipos sejam "assistidos, levantados, cuidados" — até aqui, tudo bem — e acrescenta: "honrados". Honrados??? Honrar alguém que "mais baixo caiu"? Tudo bem que tenhamos pena de quem se vê nessa situação. Mas há uma enorme diferença entre ter pena e honrar. O que esse que "mais baixo caiu" fez para merecer ser honrado, para fazer jus a honra?

Em quarto lugar, se alguém se dispuzer a assistir e levantar aqueles que "mais baixo cairam", e a cuidar deles, quem merece a honra? Os que assistiram, levantaram e cuidaram, ou os que foram assistidos, levantados e cuidados?

Começa-se a notar que a "nova justiça" do Papa é realmente nova.

Ou, talvez, não tão nova assim. Karl Marx, em sua análise do Programa Gotha ("Critique of the Gotha Program", em Marx & Engels: Basic Writings on Politics and Philosophy, editado por Lewis S. Feuer (Doubleday & Company, Inc., Anchor Books, New York, 1959), p.119), enuncia um princípio que incorpora uma nova visão de justiça. Afirma ele: "De cada um segundo as suas habilidades, a cada um segundo as suas necessidades".

Segundo essa nova justiça, a distibuição dos bens e recursos existentes em uma sociedade não se fará de forma proporcional à contribuição de cada um, mediante as suas habilidades, na sua criação ou existência, mas, sim, as necessidades de cada um. Em suma: quem de mais necessita, recebe mais; quem de nada necessita, nada recebe.

Além do que ela explicitamente declara, essa visão de uma nova justiça traz em si, de forma mais ou menos implícita, vários reconhecimentos.

Em primeiro lugar, ela reconhece que os bens e os recursos que existem em uma sociedade, e que são passíveis de ser de alguma forma distribuídos, são, em sua maior parte, criados ou gerados pelo ser humano, através do seu trabalho.

Em segundo lugar, ela reconhece que são os homens de maiores habilidades os principais responsáveis pela criação ou geração da riqueza que se contempla distribuir. Doutra forma, não haveria porque exigir que cada um contribuisse para a criação ou geração dessas riquezas "segundo as suas habilidades". Em outras palavras, o enunciado de Marx implicitamente reconhece a profunda desigualdade humana no que tange à criação ou geração de riquezas — isso é, no plano da produção.

Em terceiro lugar, ela reconhece que, equacionado o problema da produção de riquezas (que será feita de forma desigualitária, reconhecendo a contribuição diferenciada dos homens de maior habilidade), trata-se, agora, de resolver apenas a sua distribuição. Pode-se, portanto, afirmar que Marx é não só o pai do comunismo e do socialismo, mas, também, da social democracia, que não só convive bem com o modo de produção capitalista, mas o considera essencial para a geração de riquezas — desde que, naturalmente, a esquerda assuma a tarefa "distributiva" (ou "redistributiva"). A "distribuição" (ou "redistribuição") não se fará mais, na social-democracia, pela via revolucionária, mas, sim, pela via da taxação (dos impostos).

Essa nova justiça é hoje conhecida como "justiça social". Essa assim chamada "justiça social" de justiça não tem nada. Chamar de justiça social aquilo que, na verdade, é enorme injustiça, é um dos clássicos exemplos da "novilíngua" da esquerda. A maioria população não gosta de injustiças. Mas agora a esquerda pretende perpetrar as maiores injustiças. Se o fizer abertamente, porém, será repelida pela maioria da população. Nada
mais conveniente, portanto, do que chamar de "nova justiça" ou "justiça social" aquilo que, de fato, não passa de injustiça.

Observem-se os absurdos que já foram propostos em nome da tal "nova justiça".

Na década de 70 um ganhador do Prêmio Nobel em Economia, Jan Tinbergen, da Holanda, propôs, numa conferência internacional em Nova York, que criasse "um imposto sobre a capacidade pessoal dos indivíduos" — imposto esse que poderia começar, modestamente, incidindo sobre as pessoas que tirassem as melhores notas nas escolas… (Mal sabia ele que desempenho acadêmico nada tem que ver com real capacidade de criação e geração de riquezas…). (Apud PWNI, p. 103).

Em um artigo publicado no New York Times de 20 de Janeiro de 1973, sob o título "A Nova Desigualdade", Peregrine Worsthorne declara que, da mesma forma que considerávamos injusto que alguém recebesse um maior quinhão de riquezas apenas porque era filho de um conde ou de um duque, devemos considerar injusto que alguém, hoje, receba um maior quinhão por ter nascido com maior capacidade, ou ter desenvolvido melhor suas capacidades por ter nascido em um ambiente propício. (Apud PWNI, pp. 104-105).

O que Worsthorne (que nome adequado!) está propondo é que consideremos as capacidades (competências, habilidades, valores, atitudes, etc.) de um indivíduo como uma forma de privilégio que é preciso abolir, pois elas seriam semelhantes aos privilégios de nascença que vigoravam na nobreza. Por isso ele é endosse os movimentos que propõem a eliminação de "distinções educacionais", como as envolvidas em exames, notas, diplomas, etc.

Começa a ficar claro que a luta por uma "nova justiça" não é uma luta a favor dos "menores, mais pobres, mais sofredores, e mais indefesos": ela é uma luta contra os "maiores, os mais ricos, os mais felizes, os mais capazes de cuidar de si próprios". Em outras palavras: é uma luta contra os homens de habilidade. Não basta extrair mais deles, por taxação, para dar aos mais necessitados: é preciso acabar com eles, para que os mais necessitados não tenham sua auto-estima reduzida pela comparação com os bem-sucedidos.

Nesse contexto aparece John Rawls, com seu livre "Uma Teoria da Justiça". Rawls pretende passar como alguém que não é tão radical. Ele não se descreve como um "igualitário", porque admite que desigualdades de riqueza (como de poder e autoridade) podem ser justas e justificadas.

Puxa, parece que finalmente alguém com bom senso filósofo aparece. Mas a impressão dura pouco.

Segundo Rawls, as únicas desigualdades que podem ser consideradas justas e justificadas são aquelas, das quais podemos razoavelmente esperar que operem em benefício daqueles que estão em situação pior — os desavantajados. Assim, só seria justo e justificado que alguém tivesse recursos para cobrir as despesas em que necessariamente se incorre para formar um alto especialista médico se, sem esse esse especialista (i.e., sem as despesas necessárias para formá-lo), os que estão em situação pior ficassem em situação ainda pior. Não seria justo e justificado incorrer nessas despesas para simplesmente transformar em realidade o natural desejo de alguém capaz, hábil e competente de se tornar um especialista médico — porque ele simplesmente é bom e merece!

"A pessoa talentosa", diz Rawls, "não fez por merecer ("earned") nada, seja lá quem ela for. Ela só pode se beneficiar de sua sorte ("fortune") se vier também a beneficiar aqueles que saíram perdendo". (Apud PWNI, p.109).

Que uns nasçam com talentos e outros não, ou que uns nasçam com muitos talentos, e outros com poucos, parece ser, para Rawls, uma injustiça da natureza. Essa suposta "injustiça" teria de ser compensada por uma "justiça social". Segundo esta, quem é competente não tem direito aos frutos de seu talento — só os incompetentes é que sim. Estes devem se beneficiar daquilo que não conseguem alcançar, mas os competentes são privados de igual benefício.

Isso é brincar com o termo justiça.

Aquilo com que a gente nasce não pode ser objeto de avaliação moral. Logo, não se pode falar em injustiça da natureza quando alguns nascem com vários talentos e outros com poucos, ou sem talento algum. Justiça e injustiça são termos que fazem sentido apenas em um contexto moral. Não há, portanto, nenhuma injustiça natural a ser compensada por uma suposta justiça social. Conseqüentemente, a chamada justiça social, ela sim, não passa de flagrante injustiça, pois nega a alguém o direito de usufruir o resultado de seus esforços.

E aqui vemos outra falha na análise de Rawls: ninguém se forma um alto especialista médico apenas por seus talentos inatos. O processo exige dedicação, esforço, e muito trabalho. Além disso, quem se dedica a se tornar um alto especialista médico (ou um grande concertista, ou qualquer outra coisa) abre mão de uma série de outras coisas desejáveis — na convicção de que abrir mão delas será compensado por aquilo que alcançar. Mas Rawls lhe nega esse direito: dele vem a habilidade, mas os frutos dessa habilidade irão para os outros, em atendimento às suas necessidades…

Dificilmente algo mais deturpado poderia ter sido inventado pela mente humana.

Cortland, OH, 14 de Janeiro de 2005 (Transcrição de algo que escrevi em 11 de Fevereiro de 2003 em outro blog meu).

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2 comentários sobre “Justiça: a verdadeira e as falsas

  1. BOM DIA!!!!!!!!!!!!!OLÁ,como vai? espero que tudo bem.Bem! você com certeza deve estra se perguntando o porque de eu comntar em seu blog.Mas calma eu explico!!!!!Estava de bobeira na net, vendo meus espaço e achei o se perfeito.Desculpe-me mais uma vez,mas poderia dispor da honra de você adicionar-me em seu MSN?Grata epla atenção, PATRICIA

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