Matéria recente no New York Times (17/05/2005, disponível no UOL em http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/nytimes/2005/05/17/ult574u5436.jhtm) discute a tese de que o desenvolvimento embrionário explica orgasmo feminino. Explica e pergunta o artigo:
“Estudiosos da evolução nunca tiveram dificuldade de explicar o orgasmo masculino, firmemente atrelado, como é, à reprodução. Mas a lógica darwiniana por trás do orgasmo feminino permaneceu uma incógnita. As mulheres podem ter relações sexuais e até engravidar – fazendo sua parte para a perpetuação da espécie – sem experimentar o orgasmo. Então, qual o propósito evolutivo disso?”
Em um novo livro (O Caso do Orgasmo Feminino: Preconceito na Ciência da Evolução), a professora da Universidade de Indiana Elisabeth A. Lloyd examina as vinte principais teorias que explicam o orgasmo feminino do ponto de vista da biologia evolucionária e conclui que orgasmo feminino não tem qualquer função no processo evolutivo. O orgasmo feminino, diz ela, só serve "para divertir".
Naturalmente, nem todo mundo concorda. O professor de biologia John Alcock, da Universidade do Estado do Arizona, afirma que o fato de o orgasmo "não ocorrer toda vez que uma mulher faz sexo não é prova de que não seja uma adaptação". Ele afirma que a mulher pode usar o orgasmo "como um meio inconsciente de avaliar a qualidade de um macho", sua adequação genética e, assim, quão apropriado ele seria como pai de sua prole.
Na minha lista de discussão “LivreMente”, o artigo do New York Times recebeu alguma atenção – embora pouca.
Axel de Ferran disse: “Dio mio. Quanta asneira. É obvio lulante que o orgasmo da mulher a atrai para a relação. E mesmo se ela não tiver orgasmo é porque ela tinha esperanças para”.
Eu comentei:
“Acho que o Axel tem razão. . . . Se a mulher não tiver pelo menos a promessa de prazer na relação sexual, não vai querer transar — pelo menos tão freqüentemente como poderia vir a fazê-lo, na hipótese de haver prazer. Deve haver estudo que prova que mulher não orgásmica transa menos do que as orgásmicas em condição semelhante… . . . O único argumento contra essa tese que posso imaginar é o de que o orgasmo não é o único prazer inerente à relação sexual. Nem mesmo para o homem, algumas vezes.”
Cristina Almeida respondeu:
"Eu penso que nós (homens e mulheres) não temos uma natureza, uma essência de que possamos lançar mão para explicar a nossa espécie. Somos seres culturalmente produzidos. Aprendemos tudo. A nossa sexualidade não é a sexualidade de uma espécie, naturalmente gerida, ela é racionalmente construída. # Nós mulheres temos maneiras diversas de encarar a própria sexualidade porque nos fizemos mulher em ambientes que favoreceram essas diferenças. Os homens cresceram, em geral, num contexto sexualmente diferente do das mulheres e até mais uniforme. . . . # . . . Outra coisa que me vem à cabeça… os machos podem copular várias vezes, tantas quanto forem atraídos pelas fêmeas no cio (o meu cão, o Paco, fica desesperado de desejo quando uma pequena cokie entra no cio e é separada dele… Ele não é fiel a sua Lia, a dobermam com quem pode transar). O que quero dizer é que o macho Paco, se pudesse, fazia Lia estar sempre bem disposta para o sexo, convidativa, porque ele se sente atraído pelo cheiro ou sei lá o quê… Se Paco pensasse, certamente instituiria o sexo a tempo inteiro, porque o que é bom e desejável pode ser ensinado.” (# indica novo parágrafo).
Volto a falar em meu nome para esclarecer que discordo, porém, e frontalmente do pressuposto enunciado pela Cristina Almeida, a saber, de que "nós (homens e mulheres) não temos uma natureza, uma essência de que possamos lançar mão para explicar a nossa espécie: somos seres culturalmente produzidos – aprendemos tudo."
Inicio dizendo que não tenho a menor dúvida de que nós, humanos, especialmente quando comparados com outros animais, somos seres eminentemente aprendentes e, portanto, culturais (nesta ordem). Os outros animais, em sua maior parte, aprendem pouco (quando comparados com o ser humano). Uns mais do que outros, eles estão "programados" para ser o que são, fazer o que fazem, viver como vivem.
Quando comparamos o ser humano com os demais animais, podemos ficar tentados a concluir, como você conclui, que nós, seres humanos, não temos programação alguma, que somos totalmente produzidos pela nossa aprendizagem, que, sem dúvida, se dá no seio de diferentes culturas. O existencialismo é de certo modo atraente ao propor essa tese da liberdade radical do ser humano de construir sua vida sem condicionantes biológicos, sem uma natureza que possa delimitar seus horizontes. Mas ser atraente não é a mesma coisa do que ser verdadeiro. Esse ponto de vista que você aqui expõe, sem defender, me parece ser um ponto de vista clara e comprovadamente errado.
A filosofia sempre argumentou que existe algo que podemos chamar de natureza humana. No século XVIII, por exemplo, David Hume, meu "santo padroeiro", sobre o qual escrevi minha tese de doutoramento em 1970-72, deu o título à sua obra maior (que está em português) de "Um Tratado sobre a Natureza Humana" – em seus aspectos cognitivos, emocionais e volitivos (morais) — i.e., em seus aspectos não propriamente biológicos. Mais recentemente, a sócio-biologia, ou a sociologia evolutiva, de extraçãp especialmente darwiniana, tem coletado uma coleção inacreditável de evidências empíricas que comprovam uma natureza humana, não só no aspecto biológico, mas também, em parte, no cultural (que poderíamos chamar de simbólico).
Há algum tempo discutimos na mesma lista trechos de um livro que aponta a base biológica de ser o macho de nossa espécie menos seletivo, no tocante à atividaded sexual, privilegiando a quantidade, enquanto a fêmea da espécie é, em regra, mais seletiva. O homem pode engravidar várias mulheres no mesmo dia, em qualquer dia, possuindo bilhões de espertazóides para esparramar por aí, até a sua velhice. A mulher em geral produz um óvulo a cada mês, e, se engravidar, fica nove meses sem produzir nenhum, e entre os 45 e 50 anos deixa de se tornar fértil… Faz sentido, nesse quadro, que ela seja mais seletiva com os seus óvulos do que os homens são com seus espermatozóides. Não estou entrando no mérito do argumento aqui: apenas apontando para o fato de que ele existe e parece, prima facie, fazer certo sentido.
No caso da atividade sexual, há, sem dúvida alguma, aspectos importantes que são aprendidos e, portanto, influenciados pela cultura em que vivemos (ou por nossos próprios valores). Isso quer dizer que no
ssa sexualidade é, sem dúvida, sem grande parte construída socialmente. Mas ignorar a base biológica do impulso sexual é temerário. Na verdade, acho tão temerário defender a tese de que, no caso da sexualidade, o ser humano é puramente animal, dominado totalmente por seus instintos e impulsos, como defender a tese oposta, de tudo é socialmente construído e nada é biologicamente determinado. Na verdade, até mesmo o que é socialmente construído freqüentemente é construído em cima de uma base biológica incontestável.
(Embora haja os que vão me criticar por dizer isso, acho a opção pelo celibato voluntário total reflete uma visão tão distorcida da natureza humana quanto a opção pela promiscuidade absoluta. No caso do ser humano, ambas são opções disponíveis, sem dúvida. Mas se uma parece pressupor que somos apenas animais, não humanos, e, portanto, incapazes de fugir de nosso lado animalesco, a outra parece pressupor que somos anjos: seres racionais não animais, capazes de negar sua animalidade. Mas deixemos isso, por enquanto, de lado).
No tocante às alegadas diferenças entre a sexualidade masculina e a feminina, é inegável que os estereótipos culturais têm enorme influência. Mas isso não quer dizer que todos as diferenças constatadas empiricamente no comportamento sexo do homem e da mulher sejam culturalmente determinados.
O exemplo do cachorro Paco, mencionado pela Cristina Almeida, parece-me, salvo melhor juizo, comprovar a minha tese, não a dela. O comportamento do cachorro, de querer transar com qualquer cachorra que estiver perto, sempre que ficar, por alguma razão (cheiro, por exemplo), excitado, é um comportamento tipicamente biológico: reflete a natureza dele, animal macho (e a da maioria dos outros animais machos na natureza). A natureza do macho humano não é muito diferente. Embora ele possa controlar, culturalmente, o impulso que o leva a querer transar, a qualquer hora, com quem estiver disponível (ou até com quem não está — está aí a raiz do estupro), o impulso está lá… Todo o esforço cultural para tentar fazer com que o homem (humano macho), como ser cultural / simbólico, até certo ponto controle o seu lado mais animalesco, não só na sexualidade, mas também na competição, na violência, etc., longe de desprovar, parece-me comprovar a existência de uma natureza humana subjascente.
Indo além, eu diria que a natureza humana se expressa não só no seu componente biológico, mas também no seu componente simbólico ou cultural. O ser humano é (parece-me) o único dentre os animais que, deliberadamente, deixa de fazer coisas no presente, ou no curto prazo, que ele sem dúvida gostaria de fazer, em favor de benefícios postergados no médio e longo prazo; é o único que é capaz de analisar um curso de conduta, que ele gostaria de tomar, e preteri-lo, em função de um bem maior que ele espera manter e alcançar. E isso se aplica não só ao humano macho, mas também ao humano fêmea — e é especialmente importante no campo da sexualidade. A razão porque boa parte dos homens não sai por aí transando com toda mulher que se mostre disponível não é que eles não queiram, mas, sim, que eles reconhecem que há bens maiores que eles preferem manter ou alcançar.
Embora nem todos os humanos se comportem assim o tempo todo, o fato de que os humanos conseguem assim se comportar me parece um traço distinto da natureza humana — não apenas nos seus aspectos biológicos, mas nos seus aspectos simbólicos. A grandeza do ser humano está no fato de que ele é capaz de, em nome de seus valores, transcender a sua natureza animal, biológica. O fato de ele ser capaz de fazê-lo é, a meu ver, um traço evidente de sua natureza propriamente humana, simbólica. Até certo ponto a sua tragédia está no fato de que ele raramente consegue fazer isso o tempo todo. Vide as peças de Sheakespeare (ou das do teatro grego).
Em Washington, 21 de Maio de 2005