Muito se fala em Adam Smith como o pai do liberalismo – com base no fato de que, em 1776, ano da Revolução Americana, ele publicou seu clássico A Riqueza das Nações. Mas quase cem anos antes dele, em 1689, John Locke publicou seu não menos clássico Dois Tratados sobre Governo, que havia escrito, ou vinha escrevendo, há vários anos – provavelmente desde que passou a ser Secretário do Duque de Shaftesbury. (Na verdade, mais do que Secretário: consultor, confidente, amigo, tutor e mentor dos netos do Duque – inclusive do famoso Terceiro Duque de Shaftesbury, que veio a influenciar Adam Smith – e David Hume — com sua teoria dos sentimentos morais).
Adam Smith, é verdade, deu mais atenção ao Liberalismo Econômico – a Economia de Livre Mercado. Mas foi John Locke que fixou as bases do Liberalismo Político que, inquestionavelmente, inclui o Liberalismo Econômico.
Há uma outra questão histórica importante e interessante. Enquanto Adam Smith publicava seu livro no ano da Revolução Americana, fato que demonstra que sua obra não pode ter tido impacto na deflagração da revolta das Colônias Americanas contra a Inglaterra, John Locke era muito bem conhecido dos que fundaram a primeira República das Américas — que, na mente deles, americanos, ficou conhecida simplesmente como America. Thomas Jefferson, o autor da Declaração da Independência das Colônias, que oficialmente passaram a se denominar Estados Unidos da América, era um leitor atento de Locke – e traços da influência de Locke estão presentes na própria Declaração de Independência.
Vejamos no que consiste o Liberalismo de Locke descrevendo algumas de suas teses mais importantes:
a) Locke defendia a tese de que o ser humano é naturalmente livre. Na ausência de governo, reina a liberdade. O que caracteriza, portanto, o chamado “estado da natureza” é a liberdade – não (como pretendia Hobbes) a guerra de todos contra todos.
A tese da “liberdade natural” do ser humano se sustenta no argumento de que a liberdade não é um bem outorgado por um governo, por uma autoridade civil, mas é inerente à própria natureza humana – e, portanto, inseparável da condição humana. O homem é naturalmente livre – não naturalmente escravo, nem, muito menos, dividido em duas classes, a dos livres e a dos escravos. É isso que se quer dizer quando se afirma que o ser humano nasce livre – ou que foi criado livre por Deus.
É bom que se esclareça aqui que o “estado da natureza” não é, para Locke, necessariamente um estado histórico, que tenha de fato existido e que possa ser localizado e datado. É um estado imaginado em contraposição ao estado em que existe governo e, portanto, uma sociedade civil. Na realidade, o estado da natureza nada mais é do que uma imaginada sociedade anárquica, sem governo.
b) A liberdade natural se expressa na forma de alguns direitos individuais básicos e inalienáveis: o direito à vida, o direito à liberdade, e o direito à propriedade.
Na verdade, esses três direitos, no fundo, são um só: o direito à vida. O direito à vida é o reconhecimento de que cada um é proprietário único e inquestionável de seu próprio corpo e espírito (mente) – isto é, de si mesmo. A propriedade básica que o ser humano possui é a de si mesmo. É isso que significa o direito à vida.
O direito à liberdade é uma explicitação desse direito à vida – é o esclarecimento de que o indivíduo tem direito não só à sua integridade física mas à sua liberdade, que inclui o direito de se expressar como queira, de se associar com quem queira, de ir e vir como queira, de buscar a realização pessoal (a felicidade) como queira.
O direito à propriedade é também uma explicitação desse direito à vida: como é que posso ter direito à minha vida, e direito à liberdade, se não tenho direito à propriedade daquilo que é fruto de meu trabalho – daquilo que (no contexto do século XVII), não sendo de ninguém, é “apropriado” por mim na justa medida em que eu misturo o meu trabalho com algum elemento natural (em especial a terra). Aqui está a gênese da famosa teoria lockeana que vincula a propriedade ao trabalho exigido para transformar a natureza.
É preciso que se esclareça aqui, especialmente contra análises marxistas, que o fundamental, em Locke, é a liberdade, que é fundamentada na propriedade que todo indivíduo tem da própria vida. A propriedade dos frutos do trabalho é meio necessário indispensável de preservar a liberdade, sustentando a vida.
Locke não escreveu seus Dois Tratados exclusiva ou primariamente para defender a propriedade privada: escreveu-os para defender a liberdade – mas a defesa desta implica a defesa daquela.
c) Locke reconhecia, porém, que, na ausência de governo, ou seja, no “estado da natureza”, a liberdade de alguns – exatamente os mais fracos, os menos poderosos — não fica protegida. Defende, portanto, a existência do governo, desde que este tenha, como finalidade precípua, a garantia da liberdade de todos – ou seja, a defesa dos direitos naturais básicos que todo indivíduo possui.
A existência de um governo — ou uma autoridade civil — depende, portanto, do consentimento daqueles que pactuam ou contratam para criá-lo. Estes, os agora cidadãos da sociedade civil, outorgam certos poderes – poucos e limitados – ao governo em troca da garantia e da defesa da liberdade – dos direitos individuais – de todos.
Locke, embora fale em pacto ou contrato social, não imagina que esse pacto ou contrato seja um evento histórico que tenha acontecido num determinado lugar e momento. O pacto ou contrato social é tácito. Sua existência é tacitamente reconhecida quando se reconhece mais um direito — este um direito civil do cidadão, não um direito natural do homem: o direito à rebelião, ou seja, à destituição de um governo que está abusando dos poderes que lhe foram outorgados, indo além da garantia e da defesa dos direitos naturais individuais.
Locke, ao defender a tese de que o estado da natureza, embora seja um estado onde reina a liberdade, é uma condição em que a liberdade de todos não é garantida e protegida, está, na verdade, defendendo a tese da inviabilidade da opção anarquista.
d) A teoria política liberal proposta por Locke tem, portanto, um primeiro contraponto: o anarquismo, representado pela alternativa, sempre possível, de uma sociedade sem governo (o chamado estado da natureza). Contra essa alternativa, Locke defende a tese da necessidade de uma sociedade civil, ou seja, de uma sociedade com governo – ou, em outras palavras, de uma sociedade política.
Mas a teoria política liberal de Locke tem outro contraponto – talvez até mais importante. Há um outro perigo para a liberdade além do estado livre mas anárquico da natureza – tão grande quanto este ou, talvez, ainda maior. Esse é perigo representado pela possibilidade, contra a qual o cidadão deve estar sempre vigilante, de que o governo criado para garantir, defender e proteger a liberdade e os direitos individuais, extrapole essas funções assumindo outros poderes que acabam por representar um risco maior para a liberdade e os direitos individuais do que o anarquismo do estado da natureza (em que alguma liberdade sempre existe – pelo menos para alguns, os capazes de defendê-la na inexistência de governo).
Essa terrível ameaça de que a própria instituição criada para garantir, defender e assim proteger a liberdade possa ser tornar inimiga da liberdade se expressa, para Locke, em duas vertentes (claramente relacionadas entre si).
De um lado, está a vertente do poder absoluto, e, portanto, ilimitado do governo. A luta de Locke contra o absolutismo do poder estatal é bem conhecida e dispensa maior explicitação. Basta dizer que tão conhecida quanto seus Dois Tratados é sua Carta sobre a Tolerância, em que defende a liberdade religiosa contra a pretensão do estado de determinar a religião que os cidadãos podem e devem praticar.
Na realidade, a tese é claramente defensável de que o Liberalismo de Locke tem raízes mais profundas na defesa da liberdade religiosa, que implica a liberdade de consciência, ou seja, do pensamento e de sua expressão, do que na defesa da propriedade privada – embora, como vimos, para ele as duas estejam intrinsecamente associadas.
No estado absolutista, o indivíduo não é cidadão: é súdito. Nele o indivíduo perde sua liberdade por inteiro. Só o detentor do poder estatal é livre e soberano. O indivíduo, para todos os fins, é súdito, o que equivale a escravo. Ele não tem direitos: tem apenas deveres. Na verdade, tem apenas um dever: obedecer às determinações do detentor do poder estatal.
É evidente, portanto, por que Locke se opunha ao absolutismo do poder estatal.
Mas qual é a outra vertente que, no entender de Locke, faz com que o governo venha a representar uma ameaça para a liberdade? É a tese do estado “patriarcal”. Na verdade, o primeiro dos dois Tratados (em geral menos prestigiado que o segundo) é todo ele um ataque à teoria patriarcal do estado defendida por, entre outros, Robert Filmer.
Embora alguns autores, como Nathan Tarcov (Locke´s Education for Liberty) afirmem que a tese de Filmer pareça hoje “irrelevante e absurda” (p.9), ela, a meu ver, está longe de ser irrelevante e absurda hoje. Vou mostrar por quê.
A tese de Filmer se chama de “patriarcalismo” por uma razão simples e facilmente inteligível. Segundo ele, há uma clara analogia entre o poder do estado sobre seus súditos e o poder do pai sobre seus filhos – daí o rótulo de patriarcalismo.
Eis um resumo exemplar da tese de Filmer, em suas próprias palavras:
“Se compararmos os deveres naturais de um Pai com aqueles de um Rei, veremos que esses deveres são idênticos, não tendo nenhuma diferença – a não ser em sua abrangência, na extensão que cobrem. Como um Pai para com sua família, o Rei, como pai de muitas famílias, tem o dever de preservar, alimentar, vestir, instruir e defender toda a comunidade do reino. . . . Assim, os deveres de um Rei se resumem no cuidado paterno e universal do seu povo” (apud Tarcov, op.cit., p. 11 – ênfase acrescentada).
Ora, essa tese só é “irrelevante e absurda” por usar uma analogia – e, portanto, uma terminologia – que caiu em desuso: a comparação dos poderes do governante com os poderes do pai de família. Mas, em sua essência, o que é a tese de que o governo “tem o dever de preservar, alimentar, vestir, instruir e defender” todos os cidadãos senão aquilo que é expresso pelos defensores da doutrina do “estado previdenciário” ou do “estado do bem-estar social”, que tem como dever prover o cidadão com saúde, educação, seguridade social, e, quando não, com alimento, vestimenta, moradia, transporte e sabe-se lá mais o que (a lista dos chamados “direitos sociais” cresce a cada dia). Embora o termo não seja usado com freqüência, a doutrina do estado previdenciário ou do estado do bem-estar social é profunda e inerentemente patriarcalista: considera os cidadãos como crianças incapazes que não têm condições de prover para si próprias aquilo que é indispensável para a vida.
Assim, longe de ser “irrelevante e absurda”, a tese do patriarcalismo, que Locke sagazmente combateu, está presente, com outras roupagens, hoje em dia – e mais do que presente: está extremamente bem difundida. Na realidade, apesar de os esquerdizantes dizerem que o Liberalismo é hoje o pensamento hegemônico (chamado de “pensamento único”), a realidade mostra que é a tese patriarcalista do estado previdenciário ou do bem-estar social que está muito mais próxima de ser hegemônica hoje do que a tese liberal lockeana.
Disse atrás que as duas vertentes combatidas por Locke como ameaças à liberdade – na realidade, mais do que ameaças: incompatíveis com a liberdade –, a do poder estatal absoluto e a do poder estatal paternalista, estão claramente relacionadas entre si, embora Locke não tivesse como ver isso com clareza.
A tese do poder paternalista do estado gera, como vimos, reivindicações crescentes de “direitos sociais” adicionais que, se atendidos, fatalmente levam o estado a assumir poderes absolutos sobre os cidadãos, transformando-os em súditos, totalmente dependentes do estado para tudo. Friedrich von Hayek viu isso com clareza no século XX, registrando sua tese no também clássico O Caminho da Servidão (1944): o Socialismo pode até começar com boas intenções, mas, independentemente das intenções, seu resultado inevitável é o totalitarismo estatal, com a inevitável perda da liberdade dos cidadãos, transformados em súditos dependentes do estado para tudo.
Para terminar este artigo já longo, devo concluir que Locke não só foi o pai do Liberalismo dito Clássico mas seu pensamento, até hoje, é extremamente relevante – porque as teses que combateu ainda fazem parte do ideário do século XXI, mais de 300 anos depois de ele ter escrito sua obra prima em defesa do Liberalismo.
Em Campinas, 20 de agosto de 2005 (data do 38º aniversário de minha primeira chegada aos Estados Unidos)
gostaria de saber qual foi a verdadeira relação entre locke eo liberalismo político!!!mais precisamente!