Se Alvin Toffle está certo ao afirmar que riqueza é tudo aquilo que satisfaz uma necessidade ou um querer, sou uma pessoa muito rica, no momento — apesar de pequenos dramas pessoais e de frustrações profissionais.
Escrevo esta crônica a bordo de um Boeing 747, que se dirige para o Polo Norte, numa viagem de Chicago a Tóquio (voo United 881, do dia 2 de maio de 2006). O vôo saiu de Chicago ao meio-dia, hora local, e deve chegar em Tóquio às 15 horas do dia seguinte – também hora local. A duração do vôo é de treze horas. (Se algúem duvida, estude os fusos horários). De Tóquio saio às 17h30 com destino a Taipei, Taiwan, onde chego às 20h15 de amanhã — para dar uma palestra às 10h30 de depois de amanhã, abrindo um congresso sobre Jogos na Educação, do qual a Microsoft é co-patrocinadora.
Enquanto lia e ouvia música no meu iPod Nano na sala de espera do Portão C-18, no Terminal 1 do aeroporto O’Hare de Chicago, ouvi um ruído estranho no background. Era um senhor engravatado que, ao lado de alguém vestido como piloto, dizia alguma coisa amplificada pelo sistema de som. Tirei os meus fones de ouvido e prestei atenção. O engravatado dizia que aquele vôo (o vôo em que eu iria embarcar) seria o último vôo daquele comandante — que, completando 60 anos dois dias depois, era obrigado a se aposentar. Fez um breve discurso, dizendo que o comandante estava com a United há 32 anos — desde 1974. (Imediatamente me lembrei de que 1974 foi o ano em que comecei a trabalhar na UNICAMP). E que agora, em decorrência da legislação americana, era obrigado a se aposentar. (Eu também me aposento este ano da UNICAMP, depois de 32 anos de trabalho, embora não pela compulsória). E aquele era seu último vôo. "The Final Flight". Todos aplaudimos o discurso e, naturalmente, o fiel comandante – que recebeu seu broche ("pin") de aposentado como prêmio por tantos anos de dedicação. (Que eu saiba, a UNICAMP – i.e., seu corpo diretivo – nem está tomando conhecimento de que eu vou me aposentar no segundo semestre. Nem, muito menos, está planejando elaborar um pin que comemore a ocasião. E tem gente que acha que empresas privadas, que visam ao lucro, são entidades opressoras, desumanizadoras, e que a solução está em entidades estatais como a UNICAMP…)
O vôo estava surpreendentemente vazio. Estou no lugar, 12A, na parte de cima da classe executiva de um Boeing 747, sem ninguém no assento B, ao lado, e com pouca gente nos outros assentos (dos 30 lugares, só 13 estavam ocupados). Com duas comissárias de bordo e um estagiário, fui muito bem atendido – e o clima estava tão descontraído que tive a oportunidade de conversar um pouco com a tripulação. A comissária de bordo chefe, me chamando pelo nome (Mr. Chaves), veio perguntar o que eu queria comer. Havia escolha entre filé mignon, frango e massa. Preferi o filé mignon. Perguntei a ela por que o vôo estava tão vazio. Não sabia. Falou que em mais de 20 anos voando entre Chicago e Tóquio, nunca esteve em um vôo tão vazio. Sorte minha. Sorte dela também, creio – tem menos trabalho. Quanto a mim, ganhei mais espaço, mais sossego, e uma interlocutora…
Quando a Comissária veio me trazer bebidas (pedi Vodka Absolut, on the rocks, acompanhada de castanhas de caju torradas e bem salgadas), solicitei-lhe que me escrevesse numa folha de papel o nome do comandante – o piloto que estava fazendo sua viagem final. Disse a ela que pretendia escrever uma crônica sobre o episódio e queria o nome dele. Achei bonito a United reconhecer publicamente seus fiéis empregados – que certamente já viram melhores dias.
Vi que os olhos azuis dela brilharam quando lhe pedi o nome do piloto… "Claro", disse ela, assentando-se meio de lado no assento vazio. "Terei enorme prazer. Sabe que ele e eu ficamos noivos há seis meses e vamos nos casar em Dezembro?" Fui pego de surpresa. Dei-lhe os parabéns. Ousei perguntar-lhe como o conheceu. Disse que foi num desses mesmos vôos entre Chicago e Tóquio. Não especulei mais. Tive enorme vontade de perguntar se os dois eram solteiros, quando se conheceram, ou se eram casados e… Mas até a indiscrição tem limites. Não sou repórter de coluna social.
Para resumir: escreveu o nome do comandante, o e-mail dele (no Yahoo! — sorry, Microsoft), e, naturalmente, o nome e o e-mail dela (mulher é um bicho difícil de entender). Ele é o comandante Wayne Walczak. Ela, a Comissária de Bordo Nani Lovell. Os e-mails são informação privilegiada, que não revelo, nem em juizo…
Depois veio o primeiro prato. Salada de folhas verdes da estação, com molho de queijo parmesão, seguido de um "boursin" recheado com núcleo de alcachofras, acompanhado de salmão defumado e camarões gigantes. O prato principal, filé mignon, com pimentas vermelhas "chipotie", e molho demi-glacé de mostarda. Tudo "comme il faut". O vinho, para acompanhar, Château Haut-Brisey 2001 Médoc. Havia outras escolhas, mas preferi esse.
[Lamento informar que entre o primeiro prato e prato principal tive de ir ao banheiro fazer xixi… A natureza parece não conhecer as normas de bom-tom e não respeitar o clima romântico desta crônica. Eu, cronista fiel à realidade, não posso deixar de registrar o fato].
De sobremesa, "Eli’s Caramel Apple Cobbler", acompanhado de Sandeman Founders’ Reserve Porto. "Apple Cobbler" é nome sofisticado para a nossa torta de maçã – que no sul se chama "Apfel Strudel". O vinho do Porto é coisa que só aos deuses deveria ser permitido. No entanto, cá estou eu, sorvendo-o…
Enfim… O que mais se pode desejar? Querem mais riqueza do que isso? Estou viajando lendo um livro interessantíssimo (Revolutionary Wealth, de Alvin Toffler), com comida de primeira, e tendo o privilégio de conviver com histórias pessoais tão interessantes… E, para culminar, tendo acesso ao meu computador Dell (Latitude X1) que me permite registrar tudo isso enquanto as coisas acontecem.
Desejo ao comandante Wayne Walczak e à Comissária-Chefe de Bordo Nani Lovell uma vida feliz e longa. Eles certamente a merecem. Trabalharam na United num período difícil, em que a empresa passou de líder do mercado a concordatária – só se recuperando recentemente (quando saiu da concordata). Devem ganhar menos hoje do que ganhavam há 10 anos, em termos relativos.
Apesar de tudo, só lamento que a UNICAMP não seja a United – embora ambas as instituições tenham um nome que comece com "Uni" – e não reconheça aqueles que deram boa parte de sua vida a ela. Quando me aposentar da UNICAMP, terei de abrir mão do e-mail chaves@unicamp.br, e, se quiser colaborar com a Universidade, sem ganhar um tostão a mais, terei de me sujeitar a todo um ridículo processo avaliatório, extremamente burocrático, que ignora o fato de que já trabalhei ali por 32 anos. Se servi durante 32 anos, por que não iria servir agora, principalmente levando-se em conta que iria trabalhar de graça??? Não vou querer colaborar. Quanto ao e-mail, registrei o domínio unicamp.net nos Estados Unidos. Se quisesse, poderia usar o e-mail chaves@unicamp.net enquanto vivesse. Não faço questão. Prefiro continuar usando o meu eduardo@chaves.com.br. Só registrei o domínio unicamp.net para encher o saco (se bem que não saiba bem de quem).
Se a gente estiver atento, há histórias, mesmo dramas e algumas tragédias, ocorrendo ao nosso lado o tempo todo. Eu posso nem saber agora – mas este Boeing 747 pode cair antes de aterrissar em Tóquio daqui umas dez horas. Ele já tem idade para se aposentar. E, em decorrência, haverá várias tragédias pessois acontecendo. Haverá quem chore por mim, acredito.
Mais ou menos em cima do Polo Norte, em 2 de maio de 2006.
(Meu neto Felipe completa hoje um dia inteiro de vida fora do Éden uterino).
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