Das várias características que nós, humanos, exibimos, sempre me interessou um par delas. Alguns de nós somos basicamente acomodados; outros, basicamente inquietos, desacomodados, talvez até mesmo incomodados.
Isto se mostra já bem cedo em nosso desenvolvimento no plano biológico. Dá até a impressão de que a acomodação / incomodação biológica é inata.
Alguns de nós parecem já nascer extremamente tranqüilos. Nada os perturba. O mundo pode estar ruindo ao seu redor, e continuam calmos, sem se agitar.
A Andrea, minha filha nascida em 1973, era tão calma quando nasceu que pensei que ela fosse surda. Eu falava com ela, ela nem se virava para o meu lado. Fui ficando cismado. Comecei a bater palmas. Nada… Comecei a bater a porta do quarto dela. Nada… Pai de primeira viagem, levei-a imediatamente ao pediatra. Ele a examinou, falou com ela, bateu palmas, bateu a porta do escritório. Nada… Recomendou que eu a levasse a uma clínica para crianças surdas em Los Angeles (eu morava em Pomona), criada por Spencer Tracy, porque seu filho, John, nasceu surdo. Ao local deu o nome (como era de esperar) de The John Tracy Clinic. Fiquei mais apavorado do que estava. Levei-a à clínica. Lá fizeram tudo que é teste, colocaram eletrodos na cabeça da menina, tocaram sirenes altíssimas… O laudo emitido ao final dizia que barulhos muito altos ela podia ouvir, mas que o importante é se conseguia ouvir a voz humana normal – e isso os testes feitos não conseguiam determinar. (A voz de professora primária em sala de aula tenho certeza de que ela certamente conseguiria ouvir). O médico mandou-me levá-la de volta um mês depois – porque sempre havia a possibilidade de que ela fosse simplesmente tranqüila ao ponto da imperturbabilidade.
Felizmente, não precisei levá-la para o retorno. Um dia, logo depois da ida à clínica, quando ela estava no meu colo e começou a fechar os olhinhos para dormir, chamei o nome dela, baixinho. Ela abriu os olhos. Repeti o exercício (coitada) uma dezena de vezes. A Andrea conseguia ouvir-me, mesmo falando baixinho. Fiquei aliviado. Ela era simplesmente calma, tranqüila, acomodada no plano biológico.
Outras crianças já são irriquietas, desacomodadas, parecendo até mesmo que estão sempre incomodadas. Comeram, tiveram as fraldas trocadas, estão confortáveis, e, no entanto, não param de se mexer. Viram-se na direção do menor ruído, mesmo que estejam fazendo outra coisa interessante (como mamar). Se há pessoas conversando perto dela, parece que querem observar, prestam atenção. Tentam pegar tudo o que aparece pela frente, botar a mão em tudo o que se move ou tem tem saliência ou buraco…
No plano psicológico – o temperamento – também encontramos essa dicotomia. Aqui não sei se a característica é inata. Talvez seja – mas desenvolvida em interação com fatores ambientais.
Existem pessoas que permanecem toda a sua vida profissional em um só emprego. Conheço vários que trabalharam nas Indústrias Romi, por exemplo, por mais de 35 anos. Só lá. Alguns ainda estão lá. Outros saltam de emprego para emprego, sempre incomodados, nunca satisfeitos… Uns ficam tão incomodados com o emprego que têm que pedem demissão, mesmo antes de arrumar outro.
Existem pessoas que se apaixonam ou se casam apenas uma vez. Outras se apaixonam várias vezes e casam mais de uma vez.
Existem pessoas que são cordatas. Pedem um prato num restaurante, se ele não está de acordo com o que esperavam, comem assim mesmo. Compram algo, se o que compraram não vem exatamente de acordo com as especificações, ou com o que foi anunciado, concluem que não vale a pena reclamar. Outras são batalhadoras. No restaurante, devolvem o prato que não é servido a contento. Quando compram algo que não vem como esperavam, vão à luta, reclamam, ameaçam…
Mas meu interesse maior é na acomodação / incomodação que acontece no plano intelectual – o plano das idéias. Aqui também não sei se a característica é inata ou se é fruto do ambiente. Provavelmente, um pouco das duas coisas.
Vou exemplificar essa dualidade (binaridade) com exemplos da área da religião, porque é aqui, parece-me, que ela aparece com mais destaque.
Todos nós nascemos em uma família que é ou religiosa ou não-religiosa (tertium non datur).
Se a família é religiosa, há várias possibilidades: ou ela é cristã, ou é judaica, ou é islâmica, ou é sei lá mais o quê. Se a família é cristã, mais possibilidades: ou é católica, ou é ortodoxa, ou é protestante (talvez haja mais alguma alternative aqui: mórmon é protestante ou é uma categoria à parte?). Se ela é protestante, ainda mais possibilidades: então ou é luterana, ou é reformada (presbiteriana), ou é anglicana, ou é metodista, ou é batista, ou é adventista, ou é alguma outra coisa mais modernosa (as alternativas aqui são legião). [Registre-se aqui que alguns protestantes mais radicais, mais “puritanos”, se recusam a ver os anglicanos como verdadeiramente protestantes]. Se é, digamos, presbiteriana, ou é “original”, ou é independente, ou é conservadora, ou é fundamentalista. Se é “original”, ou é tradicional ou é “avivada” (do tipo mais “carismático”). E assim vai. As opções são legião.
Os acomodados (seriam a maioria) em geral ficam na situação religiosa em que seus pais estavam quando eles nascerem ou pela qual seus pais optaram enquanto eles ainda eram crianças. Se os pais mudam de opção depois de os filhos alcançarem os quatorze ou quinze anos, a probabilidade de que eles sigam os pais na mudança se reduz significativamente.
Assim, se os pais deles tinham uma religião quando eles (os acomodados) nasceram, ou passaram a ter enquanto eles eram ainda relativamente pequenos, os acomodados geralmente ficam nessa religião de seus pais. Simplesmente não a deixam ou trocam por outra. Mudar é, para eles, uma coisa complicada, na qual não vêem mérito, em si.
Mudam apenas se for estritamente necessário ou se for altamente recomendável em função de alguma coisa que se considera importante e valiosa. Um exemplo: se forem morar em uma cidade ou em um bairro onde não existe a igreja que freqüentavam, podem mudar – para uma igreja parecida. Caso contrário, não. Outro exemplo: se se casam com alguém de uma outra religião, que não é muito diferente, podem mudar, para evitar potenciais conflitos domésticos. Mas mudar por mudar, porque encontrou uma religião melhor, raramente acontece com os acomodados.
Isso explica um fato comum – que vou ilustrar com os católicos mas poderia ilustrar com os membros de outras religiões ou até mesmo de outras denominações cristãs.
O número de brasileiros que se diz católico, que vai à missa de vez em quando (Semana Santa, Páscoa, Natal), que comunga quando vai à igreja, que reza a Ave Maria e o Pai Nosso, que faz questão de se casar na igreja, que batiza os filhos na igreja, que faz o sinal da cruz diante de uma igreja ou de um féretro, etc., simplesmente porque é isso que se espera de quem “nasceu católico”, é enorme. A inércia, a indis
posição para mudar dos acomodados explica, em grande medida, esse fato. Mesmo que eles agreguem algumas coisinhas a esse catolicismo: a devoção a um orixá, por exemplo.
Mas é preciso assinalar que o número de acomodados católicos (ou de católicos acomodados) vem diminuindo no Brasil nas últimas décadas – algo que é um fenômeno interessante. Um número razoável de católicos nominais vem “mudando de religião”. Para eles isso não quer dizer que se tornam judeus ou maometanos ou budistas. Quer dizer que se tornam protestantes de alguma variedade.
Talvez haja bem mais de uma razão para isso. Mas duas me parecem ser é as seguintes.
Primeiro, a Igreja Católica brasileira, por ser majoritária, burocratizou-se, não se preocupou em modernizar seu serviço de culto (que até o Vaticano II era em latim), que tinha uns cantos (hinos) meio molengões, de uma musicalidade muito pobre… A missa tradicional sempre foi muito parada (“morta”), especialmente quando comparada com os cultos animados, cheios de corinhos e hinos, dos protestantes.
Segundo, as Igrejas Protestantes sempre valorizaram bem mais a “koinonia”, a comunhão dos crentes um com os outros, a sociabilidade. Em uma igreja protestante típica, todos se conhecem, não raram se visitam, freqüentemente, ao chegar a hora, namoram e casam entre si, fazendo com que co-membros se tornem também parentes. Elas têm a Escola Dominical, ambiente em que os membros se dividem por classe, conforme a idade, para estudar a Bíblia e a doutrina. Têm ainda sociedades de mulheres, de homens, de jovens, de adolescentes, de crianças… Organizam brincadeiras sociais, piqueniques, excursões, passeios… Para quem gosta de um ambiente em que se pratica esse tipo de conviviabilidade, esse tipo de característica é extremamente atraente. Ele praticamente inexiste na Igreja Católica convencional.
Assim, quando assediados pelo espírito evangelizador e proselitista dos crentes das Igrejas Protestantes mais recentes (em geral “pentecostalizadas”), católicos que apreciam o ambiente “avivado” e convivial dessas igrejas sucumbem e “mudam de religião”.
(O mais certo seria dizer que mudam de denominação cristã, mas o que o povo diz é mudar de religião mesmo).
Aqui três fenômenos merecem registro…
Primeiro, as Igrejas Protestantes ditas históricas, como, por exemplo, a Luterana, a Presbiteriana, e a Anglicana, não são, hoje, muito chegadas a trabalho missionário urbano do tipo corpo-a-corpo. Sustentam missionários entre os índios, ou na África, mas não são de incentivar cruzadas evangelísticas. No passado, fizeram isso. Hoje, quando muito, transmitem o culto pela televisão ou pela Internet (algo que começa a ficar comum).
Segundo, é estatisticamente desprezível o número de protestantes que se tornam católicos no Brasil. Para todos os fins práticos, a conversão para o catolicismo (não de todo incomum na Inglaterra anglicana), inexiste aqui.
Terceiro, é para mim surpreendente (por demonstrar um espírito anti-ecumênico de intolerância, que é contrário à tendência da época) a reação visceralmente negativa que alguns protestantes do tipo mais conservador têm contra a Igreja Católica, mesmo que nunca tenham sido católicos. Recusam-se a admitir que os “santos” possam ter sido verdadeiramente santos (São José eu tenho certeza de que foi santo, por razões que vão ficar mais evidentes mais adiante), recusam-se até a falar em “Evangelho segundo São João”, têm ogeriza às súplicas e promessas feitas aos “santos” e a Maria (favor não dizer “Santa Virgem Maria”), etc. A possibilidade de que se tornem católicos é, para esses protestantes, talvez mais repugnante do que a possibilidade de se tornarem “nada”…
A propósito, essa é uma expressão curiosa no português coloquial. Algumas pessoas, quando têm de informar qual a sua religião, em vez de dizer “nenhuma” dizem “não sou nada”. Isso talvez porque dizer “sou ateu” ainda choque no nosso Brasil nominalmente religioso. Ou, então, porque dizer que se é ateu, em resposta à pergunta “Qual é a sua religião?”, pode parecer, para a maioria dos ateus, uma incongruência. Porque são ateus, os ateus não têm nenhuma religião – isto é, do ponto de vista da religião, não são nada.
Já que falei em ateus, acho surpreendente o número relativamente pequeno (em termos estatísticos) de brasileiros que se declaram ateus. Mas isso não é incomum também em outros países e em outras épocas.
David Hume, o maior filósofo de língua inglesa que já viveu (era escocês e viveu no século XVIII), sempre foi admirado pelo seu ceticismo, em especial na área religiosa, pelos philosophes franceses (Diderot e patota). Quando foi morar na França (como funcionário da Embaixada Britânica), ficou surpreso ao ver a facilidade com que os iluministas franceses se declaravam ateus e mais surpreso ainda quando descobriu que todos eles o consideravam também ateu (e não cético, como ele preferia). Ele até tentou negar que fosse ateu, insistindo ser apenas cético, etc. (talvez porque ateus podiam ainda ser queimados na Inglaterra e na Escócia do Século XVIII), mas seus protestos não convenceram ninguém].
Aqui no Brasil, o número dos que são ateus, mas acham problemático dizê-lo, parece ser grande, como bem sabe o ex-presidente FHC, que perdeu a eleição para prefeito de São Paulo ao ingenuamente se declarar ateu. Os ateus não declarados em geral se declaram agnósticos, ou (como Hume) céticos, ou simplesmente se declaram sem religião, deixando a impressão (em geral errônea) de que não têm religião mas, pelo menos, acreditam em Deus. São raras as pessoas que continuam inquirindo, depois de respostas assim (pero que las hay, las hay). Seria curioso investigar por que isso se dá aqui no Brasil nessa época dominada pela ciência e pelo secular.
Outra coisa curiosa é que é muito difícil encontrar, aqui no Brasil, ateus evangelizadores, isto é, ateus que procuram convencer os outros de que o ateísmo é a opção mais “racional” e se ponham a campo a ganhar prosélitos ou adeptos para o seu ateísmo. Nos Estados Unidos e na Inglaterra isso existe. O número de livros surgidos recentemente nesses países com o objetivo de convencer os leitores de que Deus não existe e de que o ateísmo, portanto, é a melhor opção (única?), é significativo. São escritos por cientistas, filósofos e jornalistas. Nos Estados Unidos há associações de ateus – ou associações de “humanistas” que se recusam a aceitar a participação na associação de “humanistas cristãos” ou “humanistas religiosos”.
O leitor pode a essas alturas estar se perguntando aonde é que eu quero chegar…
Assim, para encerrar, meu objetivo, modesto, é triplo.
Primeiro:
Queria registrar que muitas pessoas (um grande contingente) são acomodadas no tocante àquilo em que acreditam em matéria de religião. Herdam crenças religiosas, por assim dizer, e vivem a vida inteira com elas sem se dar ao trabalho de investigar seus fundamentos com mais cuidado. Mudar para elas é complicado e difícil, por se isso se acomodam em su
as crenças.
[Muitos desses também acomodam em seus comportamentos: casam-se, porque os pais se casaram e porque, afinal de contas, todo mundo se casa. E, tendo se casado, não se descasam porque (pelo menos até pouco tempo atrás) “casamento é isso aí mesmo”… Acomodam-se, porque mudar é complicado. Vivem infelizes, porque mudar é complicado. Marcello Mastroianni sempre me pareceu um personagem curioso. Era católico, casou-se cedo, teve filhos – e teve uma enorme quantidade de casos e amantes, o mais famoso dos quais, à luz do dia para todo mundo ver, com Catherine Deneuve. Tudo indica que ele realmente amava Catherine (embora aparentemente isso não o impedisse de também traí-la). Tiveram um filho. Mas não se divorciava da mulher porque era católico. Seus catolicismo o impedia de se separar oficialmente da mulher – mas não o impedia de traí-la regular e abertamente.]
Segundo:
Queria também registrar que uma boa parte das pessoas (talvez uma parte menor do que a primeira) é, de alguma maneira, inquieta e incomodada em relação a suas crenças (em especial as religiosas, que são as que me interessam aqui). Diferentemente dos acomodados, sentem uma pressão interna razoavelmente grande para se convencer de que aquilo em que crêem é verdadeiro e que existem boas razões para crer no que crêem. Assim, desacomodam-se, inquietam-se. Em vez de ficarem tranqüilinhos na religião de seus pais, a questão da verdade e das credenciais epistêmicas (eles em geral não usam essa expressão) de suas crenças religiosas os incomoda a ponto de motivá-los a estudar aquilo em que crêem e, se for o caso, sair em busca de algo melhor.
Aqui, porém, é preciso registrar um novo binarismo.
Há os que eu chamaria de inquietos radicais, que nunca param de se questionar. Tendem, em última instância, a se tornar pelo menos céticos ou agnósticos. Alguns se tornam e se declaram ateus. Outros, como vimos, têm receio de se declarar ateus, porque não querem adotar uma postura que pode ser difícil de sustentar em alguns contextos e situações. Não querem que o ateísmo seja para eles como se fosse uma religião. (Para os comunistas o ateísmo era parte do pacote que vinha com a adoção da religião marxista. Embora eles neguem, o comunismo sempre foi uma religião. Na verdade, continua sendo para muitos ainda.)
Há, por outro lado, os inquietos moderados, que se questionam, até com severidade, mas dentro de certos limites. Se religiosos, conseguem, por exemplo, ser extremamente críticos na avaliação das crenças de outras religiões ou de outras denominações. Conseguem criticar, às vezes até acerbicamente, algumas crenças periféricas de sua própria religião ou denominação. Mas tudo, para eles, tem limite. Declarar questão aberta, por exemplo, a existência de Deus, ou a divindade de Jesus, ou a doutrina de que sua morte na cruz e sua posterior ressurreição e ascensão aos céus nos redime dos nossos pecados (desde que realmente creiamos que esse seja o caso), ou a doutrina da inspiração literal e da inerrância da Bíblia, etc., é, para eles, inadmissível.
O número de “cláusulas pétreas” nas crenças desses inquietos moderados varia de pessoa para pessoa e mesmo de uma fase para outra na vida de uma mesma pessoa.
Para alguns, essas cláusulas pétreas são muitas. Questionar a veracidade de qualquer coisa que possa ser sustentada por apelo a algum texto bíblico é, para eles, off limits. Josué parou o sol? Claro! A mula de Balaão falou? Sure. Jonas foi engolido por um peixe grande e vomitado vivo na praia três dias depois? Sem dúvida. Os demais milagres relatados na Bílbia devem ser tomados literalmente? É evidente.
Para outros, no entaanto, o número de cláusulas pétreas é menor. Mas sempre há “cláusulas pétreas”, porque a hora que deixar de haver, o inquieto deixa de ser moderado e corre o risco de ficar um radical. Algumas cláusulas pétreas, por isso, parecem essenciais para o inquieto moderado. Ainda que sejam poucas.
Terceiro:
Ouso sugerir, para encerrar, que, para um cristão convicto e conservador, há duas barreiras difíceis de transpor.
A primeira é a colocada pela doutrina (tese) da inspiração literal e da inerrância da Bíblia. Segundo essa tese, tudo na Bíblia é verdadeiro e foi literalmente inspirado por Deus aos autores, que foram apenas amanuensis da voz de Deus. Assim, é impossível que haja erro na Bíblia.
É verdade que mesmo os cristãos mais conservadores tendem a se recusar a aceitar como verdadeiras ou legítimas algumas coisas que a Bíblia afirma ou prescreve – em especial se estão no Velho Testamento. Recusar-se a aceitar algumas coisas encontradas no Velho Testamento é mais fácil, porque, afinal de contas, o Velho Testamento é a Bíblia dos judeus e foi, em alguns aspectos, pelo menos, suplantado pelo novo. Mas muitos cristãos mais conservadores se recusam a aceitar coisas que estão no Novo Testamento. Dou alguns exemplos. Poucas são as mulheres cristãs que acham que a determinação para que não cortem o cabelo é realmente a vontade de Deus, que deve ser seguida. Ou a determinação de que devam ser submissas a seus maridos. Ou, o que é parte dessa submissão, de que devem “se sujeitar a seu marido” quando ele quiser, sem dor de cabeça, muito sono, muito cansaço ou outra desculpa qualquer.
No caso dessas injunções paulinas, quem as rejeita sempre encontra um jeito de se justificar – mais ou menos. São Paulo (desculpem-me os que acham que não se deve chamá-lo de santo) de vez em quando usava o artifício de dizer “agora (ou aqui) falo como homem”, sugerindo que, quando não dizia isso, estava falando (supostamente) como Deus. Isso permite as pessoas que se recusam a aceitar essas injunções a supor que ali Paulo (para contrabalançar) falava como homem (mesmo que tenha esquecido de esclarecer o leitor…).
No caso da sujeição da mulher às demandas sexuais de seu marido, a pessoa pode sempre retorquir que (São) Paulo também disse que igualmente o marido não poderia se furtar de cumprir o seu dever conjugal se a tanto fosse intimado pela mulher. Tudo bem. A exigência é recíproca. Mas há alguém que a cumpra, nos dias de hoje, mulher ou homem?
E (voltando ao Velho Testamento), diz a Bíblia que Deus criou Adão, e, depois, para fazer companhia a Adão, criou a Eva. Diz ainda que os dois tiveram dois filhos, Caim e Abel, e que Abel foi assassinado pelo irmão, quando aparentemente era muito jovem ainda – razão pela qual Caim e seus descendentes foram amaldiçoados. A questão problemática é: com quem se casou Caim? A Bíblia fala em sua descendência. E não diz que o Criador tenha feito com ele o que fez para seu pai: tirado uma mulher de sua costela. E outros seres humanos, por definição, não havia, posto que a criação havia (relativamente falando) acabado de acontecer. A única resposta viável é que Caim se casou com uma irmã sua. Mas se foi isso, incesto entre irmãos seria admitido pela Bíblia? Caim é amaldiçoado por ter assassinado o irmão, não por ter se relacionado com a irmã…
As coisas começam a ficar mais complicadas em relação, por exemplo, ao nascimento de Jesus. Foi realmente virginal? Ou será que a Bíblia queria dizer apenas que o Messia
s nasceria de uma mulher jovem (parthenós)? Mas a Bíblia registra que José ficou queimado com a história da gravidez de Maria, porque nada havia passado entre eles. José aparentemente acreditou na história do anjo e do Espírito Santo. (Por isso o considero um verdadeiro santo). Mas todo cristão precisa acreditar nisso também? Se a concepção e o nascimento de Jesus foram normais, não virginais, e José foi o pai verdadeiro de Jesus, muda alguma coisa substancial no Cristianismo? Karl Barth, o mais importante teólogo da Igreja Reformada do século XX achava que não. Rudolf Bultmann, o teólogo mais importante da Igreja Luterana do século XX, também achava que não.
Na verdade, Bultmann defendeu a tese de que o Novo Testamento deveria ser “demitologizado”, porque havia se tornado incompatível com crenças básicas do “homem moderno”. A ressurreição física de Jesus? Um mito. O mundo está dividido em três andares, nós aqui no andar do meio, o céu no andar de cima e o inferno no andar de baixo? Ridículo. Jesus subiu aos céus? Subiu aonde? Vai voltar? Voltar? De onde? Nós vamos ser ressuscitados no fim dos tempos? Imagine! Vamos ser arrebatados misteriosamente e sem aviso prévio e levados para encontrar o Jesus que volta nas nuvens? Está brincando comigo. Tudo isso é mito, diz Bultmann, vestígio de uma mentalidade relativamente primitiva, certamente pré-científica. Ao chamar muitas das coisas relatadas no Novo Testamento de mitos, e não de meras superstições, Bultmann indicava que é preciso extrair dos mitos a sua mensagem (o seu kerygma), mas nunca aceitá-los literalmente, como se fossem verdades científicas.
O que sobra quando tudo isso passa ser considerado mito, não fato? Segundo Bultmann, que era um existencialista heideggeriano (Bultmann e Heidegger eram colegas na Universidade de Marburg), sobra a doutrina da existência inautêntica (segundo a carne) versus a existência autêntica (segundo o espírito) –e de como passar de uma para a outra. Mas até a maneira bíblica de se referir a esses dois tipos de existência precisa ser demitologizada e expressa em linguagem mais filosófica, existencialista.
O dilema: ou a gente engole tudo ou, se começa a recusar uma coisinha aqui, outra ali, tem jeito de parar? E parar onde?
A segunda barreira difícil de transpor é a da existência de Deus. Conheço muita gente que se recusa a aceitar a maior parte daquilo que a Bíblia diz – mas que encontra seu limite na existência de Deus.
Que Deus?
Para Tillich, Deus é “the ground of being”, aquele fundamento que mantém o mundo em existência.
Mas esse fundamento é pessoal? É possível falar com ele, pedir-lhe coisas, dar-lhe graças, descobrir sua vontade? Hummm.
É isso. Por enquanto. Tenho certeza de que falei demais.
No ar, entre Tóquio e Chicago, 30 de Abril de 2010.
Rrevisado em São Paulo, em 1º de Maio de 2010 ;
Revisado mais uma vez no ar, agora entre Philadelphia e Seattle, em 4 de Maio de 2010.