Machado de Assis

Joaquim Maria Machado de Assis morreu em 29 de Setembro de 1908. Este ano celebra-se o centenário de sua morte, portanto. Para comemorar a data comprei ontem a obra completa dele, em três volumos, impressos, em edição bonita, de papel do tipo bíblia, disponível, com quase 60% de desconto, na Livraria Cultura de Campinas. O preço de tabela passava dos seiscentos reais. O preço pago ficou em 250 — com a opção de pagamento em cinco parcelas. Uma pechincha. Sendo obra completa, a edição traz, naturalmente, os livros, os contos, as contribuições para jornais, as poesias. Tudo. Cerca de 3.500 páginas de referência para a literatura e para a língua portuguesa.

Comecei lendo o conto, em forma epistolar, "Confissões de uma Viúva Moça". Delicioso. Recomendo "highly", como dizem os americanos. Foi publicado como folhetim, segundo consta de maio a julho de 1865, no Jornal das Famílias, então editado por B.-L. Garnier, editor de nome ilustre. O conto não veio assinado por Machado, mas simplesmente por J.

O conto é polêmico, a começar pelo pseudônimo usado — ou, antes ainda, pela razão que levou Machado a recorrer a um pseudônimo. Outro aspecto polêmico está na expressão "viúva moça", que, em meados do século XIX, segundo alguns, visava a atrair leitores de motivos menos puros… Como diz um deles, "não eram incomuns viúvas moças naqueles tempos em que as pessoas morriam cedo. Mas o que importa a mais é que elas tinham liberdade de dispor de si mesmas, não desfrutada pelas moças solteiras" (citação de John Gledson, em Machado de Assis, Contos: Uma Antologia. Seleção Introdução e Notas de John Gledson, Companhia das Letras, São Paulo, 1996, vol. I, p.22; apud Lúcia Granja, "Novas Confissões sobre um Conto Polêmico", disponível na Internet no seguinte URL: http://www.machadodeassis.net/download/Novas Confissões sobre um conto polêmico de Machado de Assis.pdf – consultado hoje, 19/08/2008). É interessante notar que meses antes ele já havia publicado, desta vez sob o próprio nome, um outro conto sobre o tema, com o título "Casada e Viúva" — que, talvez, seja tão sugestivo provocador quanto o título do conto subseqüente. (Este título faz lembrar a chamada sobre a Viúva Porcina, na novela Roque Santeiro, de Dias Gomes: "A viúva que foi, sem nunca ter sido"…)

Machado sabe alimentar a curiosidade de leitores de motivos talvez não tão puros, como eu próprio. Na primeira carta, a viúva disse à sua amiga, destinatária da carta, que preferia fazer suas confissões por cartas e não "por boca", porque, nesta hipótese, "talvez corasse de ti". Lindo fraseado — e promessa de que as confissões serão de fazer corar (está bem — corado de século XIX pode não significar nada hoje). "Deste modo", diz a viúva, "o coração abre-se melhor e a vergonha não vem tolher a palavra nos lábios". Machado sabe atiçar a curiosidade do leitor.

Talvez orquestrado para aumentar circulação do jornal, surgiu um debate, em que um tal de Caturra insinuou que o que estava por vir no que ele chamou de "romancito" em fascículos, atentaria contra os costumes. Machado (isto é, J.) rebateu no número seguinte do jornal, enfatizando que "o autor das Confissões respeita, mais que ninguém, a castidade dos costumes". Dificilmente um debate desses, alimentado nos números seguintes do jornal, deixaria de trazer mais leitores para o períódico.

Caturra voltou à carga, criticando a "liberdade exagerada de imprensa" que permitia que um "romancito" como aquele fosse publicado justamente nas páginas de um jornal que se pretendia das famílias. Na seqüência do debate, orquestrado ou não, Machado de Assis interveio, em próprio nome, e assumiu a autoria do "romancito". (As referências ao debate são apud Lúcia Granja).

Em outro artigo sobre o conto disponível na Internet, "Provocações de uma viúva moça", Thomaz Pereira de Amorim Neto levanta uma outra questão interessante abordada pela obra. Eugênia — a missivista — chama o amor que sentia pelo misterioso personagem que despertou seu interesse, enquanto ela era ainda casada, de crime. "Era um crime, eu bem o via, bem o sentia", diz ela. Comenta Thomaz Pereira:

"Que crime é esse? A traição de um contrato social? Não acreditamos que seja isso. Em realidade, a leitura que propomos ao tentar reinserir as citações na própria questão do enredo do texto é: o crime é o distanciamento do dogma do matrimônio. A infidelidade, pois, seria um crime não contra o marido, mas contra Deus e, portanto, um pecado mortal. Mas, ao mesmo tempo, a força da paixão toma aqui um viés pagão, trágico, o que faz a
narradora se colocar na tensão de não citar nada além de gregos e bíblicos." (
http://www.idelberavelar.com/abralic/txt_25.pdf).

Esse dogma persiste até hoje — embora, felizmente, tenha saído do centro das preocupações da sociedade para ocupar-lhe a periferia.

Enfim.

Quem sabe eu terei, mais ou menos machadianamente, suscitado em mente curiosa o desejo de ler o conto. Se isso acontecer, terá valido o preço da coleção.

Em Campinas, 19 de Agosto de 2008

50 Anos de Atlas Shrugged

Na próxima quarta-feira, dia 10 de Outubro, cinqüenta anos atrás, no ano de 1957, foi publicado o livro Atlas Shrugged, de autoria de Ayn Rand — o mais profundo romance de análise política do século XX. Um romance engajado de uma escritora radicalmente liberal.

Os críticos literários não gostaram — o que não é novidade. A esquerda — em especial a esquerda marxista — detestou. Mas o público leitor gostou.

Um pouco antes da virada do século a Random House, editora americana, resolveu elaborar duas listas dos 100 melhores livros de ficção do século XX. Para a primeira, solicitou a opinião dos seus editores; para a outra, a opinião do público leitor. Não há surpresa no fato de que as duas listas quase não têm sobreposições. Atlas Shrugged ficou no primeiro lugar na lista dos leitores, seguido de The Fountainhead, também de Ayn Rand (publicado em 1943). As duas listas completas estão disponíveis no site da Random House, no endereço:

http://www.randomhouse.com/modernlibrary/100bestnovels.html 

O fato de Atlas Shrugged haver ficado em primeiro lugar na lista dos leitores é surpreendente por várias razões. Uma delas é que o livro tem, em sua edição de capa dura, quase 1.200 páginas. Outra, que essas páginas contêm discussões filosóficas bastante densas acerca da natureza humana, do trabalho, do sexo, da felicidade; da lógica, do conhecimento e da verdade; da ética e dos valores; da liberdade e dos direitos individuais; da política, do estado e do governo; da economia, da livre iniciativa, da propriedade privada. O livro é uma defesa intransigente do liberalismo, sem adjetivos, e do capitalismo, que é sua expressão na área econômica. A defesa do capitalismo tem como base não só o fato de que ele é o único sistema econômico capaz de realmente produzir riqueza e desenvolvimento (econômico, social e humano), mas também o único sistema econômico compatível com um regime político livre e, portanto, justificável moralmente.

A natureza filosófica de Atlas Shrugged pode ser percebida na simples leitura do título de suas três partes: "Não-Contradição" ("Non-Contradiction"), "Ou Um Ou Outro" ("Either-Or") e "A é A" ("A is A"). Esses três títulos se referem aos três princípios básicos da Lógica, a saber: o princípio da Não-Contradição (nenhum enunciado pode ser verdadeiro e falso), o princípio do Terceiro Excluído (um enunciado tem de ser ou verdadeiro ou falso, não há uma terceira possibilidade), e o princípio da identidade (se um enunciado é verdadeiro, então ele é sempre verdadeiro; se ele é falso, então ele é sempre falso).

É um tributo à habilidade lingüística de Ayn Rand, para quem o Inglês não era a língua mãe (ela nasceu na Rússia em 1902 só veio para os Estados Unidos já adulta, em 1926), que ela tenha conseguido tal domínio dessa língua que seu livro é um considerado um clássico da literatura americana.

É um tributo à habilidade literária de Ayn Rand — que inclui as habilidades de construir um enredo fascinante e definir personagens marcantes — que Atlas Shrugged, apesar do tamanho e da complexidade da trama, tenha vendido mais de seis milhões de cópias em suas várias edições (incluindo as traduções).

A história, narrada na terceira pessoa, se passa nos Estados Unidos, em algum momento depois da guinada daquele país para a esquerda, durante o New Deal (década de 30, começo da década de 40). Provavelmente a data melhor para situar os eventos seja por volta do final da década de 40 e início da década de 50 (que é o período em que o livro estava sendo escrito). Na história, os vários países europeus já se tornaram "Repúblicas Populares" ("People’s Republics"), isto é, já se tornaram socialistas, e os Estados Unidos caminham rapidamente na mesma direção. O governo americano, "em nome do povo", interfere aberta a decididamente na economia, com leis e decretos ("diretivas") que buscam "igualizar as oportunidades empresariais", mas que tornam cada vez mais difícil para os empreendedores realmente competentes produzirem livremente, isto é, sem involuntariamente descumprirem ou intencionalmente burlarem alguma determinação governamental. A tentativa de "igualizar as oportunidades empresariais" é feita em nome do princípio marxiano de que os que têm competência e habilidade devem obrigatoriamente ajudar os que precisam: "de cada um conforme a sua habilidade, a cada um conforme a sua necessidade".

A estratégia do governo regulamentador, como cinicamente revelada pelo Dr. Floyd Ferris, um dos diretores do Instituto Nacional de Ciência (State Science Institute), não é que todos os empresários cumpram essa miríade de normas e regulamentos. A intenção é que todos os empresários se tornem, inevitavelmente, criminosos, por ser impossível produzir sem quebrar alguma norma ou regulamento governamental. Como o poder governamental é, acima de tudo, o poder de punir os criminosos, o governo, assim, adquire um enorme poder de barganha, vendendo favores através de esquemas cada vez mais corruptos.

(Qualquer semelhança com o Brasil de hoje é pura coincidência…)

(O governo não tem nenhum poder de barganha com o inocente: sua força advém do fato de que ele pode punir — aqueles que quebram suas leis. Se as leis forem mínimas e racionais, pouca gente as descumpre. Se existirem, porém, em grande quantidade e formarem um emaranhado indecifrável de normas e regulamentos de interpretação sempre obscura e questionável, todo mundo se torna criminoso e, portanto, passível de punição por parte do governo. Como é virtualmente impossível punir todo mundo, o governo seleciona aqueles que ele, sob a ameaça de punição, quer "enquadrar".)

Nesse quadro, começa a aparecer um desenvolvimento interessante e curioso, que fornece o elemento central do enredo do romance. Quando a pressão se torna perto de insuportável para um grande industrial, ele desaparece sem deixar vestígio. Às vezes destrói sua indústria antes de partir, outras vezes a deixa intacta, na certeza de que, sem ele, ela não vai durar muito. Gradativamente vai se mostrando que esses desaparecimentos não são atos de covardia individuais, sem coordenação, mas, sim, parte de uma greve dos empresários realmente competentes e produtivos, dos quais depende a economia nacional — greve inicialmente pequena, mas que ganha momento e começa a preocupar não só os empresários que ainda não aderiram, mas o próprio governo que, pouco a pouco, percebe que a economia está entrando em colapso.

O objetivo da greve é mostrar ao mundo quem sai realmente perdendo quando quem entra em greve… As greves tradicionais, feitas pelos trabalhadores contra os empresários (especialmente do setor industrial), tentam mostrar que os trabalhadores são os reais produtores, a fonte real da riqueza dos empresários industriais, que os exploram, retendo para si a "parte do leão" do preço de venda dos produtos (a "mais valia"). A greve dos empresários industriais procura mostrar que eles são os reais geradores de riquezas, criando-as com sua capacidade criativa (suas idéias inovadoras) e produtiva (sua habilidade de transformar essas idéias em realidade, isto é, em pr
odutos e serviços). Sem eles a maior parte dos trabalhadores não teria trabalho e literalmente morreria de fome (como freqüentemente acontecia antes do regime capitalista e aconteceu nos regimes comunistas). Os empresários industriais são, portanto, o Atlas que segura o mundo nas costas. Ao entrar em greve, eles estão sacudindo os ombros e deixando o mundo literalmente ir para o brejo.

Atlas Shrugged foi publicado pela Random House nos Estados Unidos. O livro foi publicado em Português, no Brasil, em 1987,  trinta anos depois de sua publicação nos Estados Unidos, sob o título Quem é John Galt? A tradução é de Paulo Henriques Britto e a publicação foi feita pela Editora Expressão e Cultura, do Rio de Janeiro. No momento a edição brasileira parece estar esgotada. Tenho duas cópias dela, uma em um volume, dentro de uma caixinha de papelão, e outra em dois volumes. 

Em Salto, 10 de Outubro de 2007.

Graham Greene e sua biografia

Olhando minha lista de livros a comprar, sinto-me na obrigação de esclarecer que comprei os três volumes da magnífica biografia de Graham Greene escrita por Norman Sherry. No total os três volume chegam perto de 2.500 páginas, que custaram a Norman Sherry bem mais de uma década de vida.

Estou avançado na leitura do primeiro volume, que cobre a vida de Greene do nascimento, em 1904, até 1939. Ao mesmo tempo, estou relendo três dos livros dele de que mais gosto: The Power and the Glory, The Heart of the Matter e The End of the Affair (cujo filme, em sua versão mais recente, com Julianne Moore e Ralph Fiennes, é maravilhoso).

Ao ler a biografia fico me perguntando o que leva uma pessoa, como Norman Sherry, a dedicar tantos anos de sua vida a biografar uma outra — por mais importante e interessante que seja essa outra pessoa…

Consta que Norman Sherry visitou todos os lugares que se sabe que Graham Greene visitou, retraçando os passos do seu biografado. Leu tudo o que se sabe existir que tenha partido da pena ou da máquina de escrever de Graham Greene, inclusive cartas particulares, caçadas mundo afora. Investigou tudo o que já foi publicado sobre Graham Greene, inclusive em autobiografias e memórias. Entrevistou milhares de pessoas.

Acho fantástico esse esforço, notável essa dedicação a uma tarefa.

Cortland, OH, 30 de Dezembro de 2004