Em defesa do direito de não ser perfeito

A crônica de Ruy Castro hoje na Folha é perfeita – exatamente por defender o nosso direito de não ser perfeito.

Ruy Castro discorre sobre algo que foi dito por João Marcello Bôscoli – filho da quase perfeita (enquanto cantora) Elis Regina (e também filho de Ronaldo Bôscoli e enteado de Carlos Camargo Mariano). Gente que, se a genética vale alguma coisa, deve entender de música.

Leia abaixo a crônica.

Mas, antes, eu acrescento, como de praxe, meus comentários.

A indústria do software parece querer nos “salvar da imperfeição”.

Não sei se começou com Photoshop. Talvez não. Possivelmente Photoshop apenas colocou ao alcance de nós, mortais, o que já estava disponível para profissionais.

Lembro-me de como fiquei chocado, já há muito tempo, quando visitei a redação da Playboy, na Editora Abril, acompanhando alguns americanos que queriam fazer uma parceria com uma grande editora brasileira. Ali vi monitores de computadores enormes, de altíssima resolução, com software sofisticado operado com teclado, joystick e trackball, cuja função era remover as imperfeições das fotografadas da revista. O software, nas mãos hábeis dos artistas gráficos, removia barriguinhas salientes demais, aumentava e reconfigurava bumbuns pequenos demais (aos olhos das preferências masculinas típicas), reduzia, aumentava, endurecia e levantava seios, melhorava lábios, eliminava papadas e rugas, tirava manchas na pele, escurecia a foto quando ela mostrava (como diz o mineiro) “demais da conta”… (Algumas coisas, quando mostradas “demais da conta”, perdem o seu encanto). Enfim: o software produzia uma versão fotográfica perfeita de uma fotografada fisicamente ou esteticamente imperfeita – como a Hortência, por exemplo.

Já existe, sei disso, um software que faz algo equivalente, não apenas em fotografias isoladas, como as da Playboy, mas com vídeo (para as novelas, por exemplo). Esse “software de rejuvenescimento” permite que atrizes sessentinhas possam aparecer em séries como “As Cinqüentinhas”… Ele rejuvenesce seqüências de fotos, no vídeo, on the fly. Faz nossas Reginas Duartes e Suzanas Vieiras aparecerem perfeitas nas novelas e séries – apesar das imperfeições que (do ponto de vista físico ou estético) as acometem (como a todo mundo que tem a ventura de não morrer jovem).

Agora vem Auto-Tune – o software que remove os desafinamentos do cantor. Mas não só isso: corrige também a respiração, as pausas, o volume de voz, o alcance, etc.. Fiquei otimista. Imaginei de imediato que versões futuras do software possam permitir que nossas vozes recebam o timbre do cantor de nossa escolha e, assim, eu possa, quem sabe, finalmente me sinastrizar: cantar My Way com a naturalidade e a beleza com que Ol’ Blue Eyes a cantava…  Ou cantar A Deusa da Minha Rua como Nelson Gonçalves… Ou possam me permitir tornar-me um travesti cantante, assumindo a voz de Maria Bethania cantando Roberto Carlos (As Canções que Você Fez pra Mim), ou, maior desafio ainda, Ney Matogrosso cantando Lupicínio (A Flor da Pele)…

Enfim: a indústria do software quer nos “salvar da imperfeição” e nos tornar, a nós humanos musicais, como os deuses da música… Perfeitos.

Mas Ruy Castro está na contra-corrente. Ele quer nos “salvar da perfeição”. Sua crônica é uma versão secular do livro Salvos da Perfeição: Mais humanos e mais perto de Deus, do pastor protestante Elienai Cabral Junior (vide http://www.ultimato.com.br/?pg=show_livros&util=1®istro=531 e também o blog do autor, O Blog do Elienai: http://elienaijr.wordpress.com/). Já comentei o livro do Elienai aqui, neste space, mais de uma vez. Elienai afirma que o Evangelho (contrário ao que acreditam e pregam alguns), nos salvou da necessidade de buscar a perfeição. Ele é a mensagem de um Deus que, sendo Deus, e, portanto, perfeito, se fez homem (assim, com “h” minúsculo, e, portanto, imperfeito), e, assim, ao se tornar homem, nos liberou do imperativo de nos tornarmos Deus, o único que era de fato perfeito (mas que, ao encarnar, optou pela imperfeição humana)… A queda humana, segundo Gênesis 3:5, se deu porque o ser humano quis ser como Deus: a serpente tenta a mulher dizendo que, se ela e seu marido comerem do fruto proibido, “sereis como Deus”. A salvação do homem vem quanto ele, reconhecendo a futilidade de se tornar como Deus, percebeu que Deus já se tornou homem, e, portanto, não há por que devamos querer ser deuses, ou ter a perfeição deles.

Enfim. Ruy Castro conclui: “O filho da cantora mais afinada do Brasil defende os desafinados no que eles têm de mais precioso: sua falível condição humana, essencial à obra de arte”.

Em outras palavras: Ruy  Castro também defende a nossa falível condição humana, da qual, no Éden, tentamos desastrosamente fugir para sermos como Deus. O Deus do Velho Testamento nos condenou por tentar. O Deus do Novo, provavelmente já mais velho e de coração mais mole, vendo que queríamos ser como ele, optou por se tornar como nós…

Amém. Ou, como preferem alguns pregadores de TV, “Amém, amém e amém”.

Admiro a Maria Bethânia, portanto, por sua teologia – que, se Feuerbach, estava certo, é sempre antropologia. Ela se deixa envelhecer naturalmente, não esconde os cabelos brancos, as rugas, não faz plástica, não usa botox. Ela é o que ela é. Um ser humano. E não precisa nem mostrar o seio, que a gente sabe que ela tem, como o fez a outra baiana, a Gal, num gesto bobo, pobre e de mau gosto. Bethânia é uma cantora que, apesar dos anos, continua a ter uma voz e uma interpretação quase perfeitas, sem software, mas um rosto e um corpo que mostram que ela é humana como todos nós. “Humanum sum et nihil humanum a me alienum puto” (Terêncio).

Eis a crônica do Ruy Castro.

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Folha de S. Paulo
5 de Junho de 2010

RUY CASTRO

Proibido não ser perfeito

RIO DE JANEIRO – No sábado último, em belo artigo, o Caderno 2 do “Estado” anunciou “A morte da voz humana”. Nenhum exagero no título. O Auto-Tune -o software que “corrige” a afinação dos cantores- está criando padrões de perfeição inatingíveis para humanos, oferecendo a recompensa sem esforço e tornando dispensáveis a vocação, o talento e o mérito na música popular. “É como se Ronaldinho Gaúcho usasse uma chuteira que acertasse o gol por si. Treinar pra quê?”, pergunta o autor.

O grito foi dado por quem tem toda autoridade para fazê-lo: João Marcello Bôscoli, 40 anos, músico, produtor e diretor de gravadora. Como se não bastasse, filho de Elis Regina e do compositor Ronaldo Bôscoli, um dos criadores da bossa nova, e que teve como padrasto o pianista César Camargo Mariano, com quem Elis se casou ao se separar de Bôscoli. Nunca houve gente mais exigente em música.

Para João Marcello, pior até do que dar afinação a quem não tem, o Auto-Tune está fazendo com a voz o que o Photoshop fez com a pele humana. Assim como o Photoshop “gerou um padrão estético onde poros, rugas de expressão, pelos e outras características se tornaram defeitos”, o Auto-Tune passa o rodo e “corrige” tudo o que considera imperfeito no cantor: afinação, respiração, pausas, volume, alcance -sem se importar se pertencem à sua expressão e emoção.

Ele vai mais longe: “Hoje em dia tomamos remédio quando sentimos tristeza, comemos lixo pré-mastigado quando temos fome, dopamos as crianças quando estão agitadas, passamos horas no computador quando nossa vida parece desinteressante” etc. -e “usamos softwares de afinação quando temos um cantor desafinado”.

O filho da cantora mais afinada do Brasil defende os desafinados no que eles têm de mais precioso: sua falível condição humana, essencial à obra de arte.

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Em São Paulo, 5 de Junho de 2010 (de madrugada); levemente revisto em São Paulo, 20 de Março de 2018.

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A identidade pessoal da mulher brasileira: a propósito do artigo de Mirian Goldenberg

Bom assunto para começar o mês do Dia dos Namorados e de Santo Antonio, o santo casamenteiro… Bom, mas controverso e complicado.

O corpo da mulher e o seu marido têm papéis semelhantes na vida da mulher brasileira, segundo a tese de Mirian Goldenberg. Ambos funcionam como parte de seu capital: capital corporal e capital marital.

A identidade da mulher brasileira parece inseparavelmente ligada ao seu corpo, à sua aparência; ou, então, especialmente no caso das casadas há muito tempo, ao seu marido. Em regra. Há, naturalmente, exceções. Mas, para a mulher que faz parte da regra, quando ela perde o seu corpo (sua aparência juvenil, a barriga chata, o peito e a bunda firmes), ou, alternativamente, quando perde o marido, sua identidade freqüentemente se desestrutura.

Apesar de o corpo ser diferente do marido no sentido de que o corpo é inegavelmente dela, ambos compartilham a característica da volatilidade: não são permanentes, são perdíveis. O corpo, ao tempo, a doenças, ou a acidentes; o marido, também ao tempo (pela morte), ou a outras/outros (pela separação),

Assim, é arriscado formar uma identidade pessoal na qual o corpo ou o marido foi fundido, como se em bronze, identidade que fica deformada na ausência de um ou de outro. Se ambos se vão, o que sobra?

Vale a pena lembrar aqui, em relação ao primeiro fator, a tese de que temos um corpo, mas não devemos nos confundir com ele (tese questionada por muitos, hoje em dia, nessa época de valorização do corpo). Nossa identidade pessoal, embora não possa ignorar totalmente o corpo, não deve se fundir em bronze com ele. Deve ter uma base mais mental…

Talvez valha a pena lembrar algo análogo em relação ao casamento… 

Enfim, vale a pena ler o artigo de Mirian Goldenberg.

Parece que mulheres de outros países lidam melhor com suas perdas: a perda do corpo jovem e viçoso, a perda do marido (por separação ou morte). Seria interessante estudar como formam sua identidade pessoal.

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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq0106201001.htm

Folha de S. Paulo
1º de Junho de 2010

Outras Idéias

Mirian Goldenberg

O marido como capital

No Brasil, as mulheres experimentam o envelhecimento como um período de perdas ainda maiores

NO BRASIL, o corpo é um capital. Certo padrão estético é visto como uma riqueza, desejada por pessoas de diferentes camadas sociais.

Muitos percebem a aparência como veículo de ascensão social e como capital no mercado de trabalho, de casamento e de sexo. Para aprofundar essa discussão, estou fazendo um estudo comparativo com mulheres brasileiras e alemãs na faixa de 50 a 60 anos.

Já nas primeiras entrevistas, constatei um abismo entre o poder objetivo que as brasileiras conquistaram e a miséria subjetiva que aparece em seus discursos.
Elas conquistaram realização profissional, independência econômica, maior escolaridade e liberdade sexual.

Mas se preocupam com excesso de peso, têm vergonha do corpo, medo da solidão.

As alemãs se revelam muito mais seguras tanto objetiva quanto subjetivamente.

Mais confortáveis com o envelhecimento, enfatizam a riqueza dessa fase em termos de realizações profissionais, intelectuais e afetivas.

A discrepância entre a realidade e a miséria discursiva das brasileiras mostra que aqui a velhice é um problema muito maior, o que explica o sacrifício que muitas fazem para parecer mais jovens.

A decadência do corpo, a falta de homem e a invisibilidade marcam o discurso das brasileiras. De diferentes maneiras, elas dizem: "Aqueles olhares e cantadas tão comuns sumiram. Ninguém mais me chama de gostosa. Sou uma mulher invisível".

Curiosamente, as brasileiras que se mostram mais satisfeitas não são as mais magras ou bonitas. São aquelas que estão casadas há anos. Elas têm "capital marital".
Em um mercado em que os homens disponíveis são escassos, principalmente na faixa etária pesquisada, as casadas se sentem poderosas por terem um "produto" raro e valorizado. Aqui, ter marido também é um capital.

No Brasil, onde corpo e marido são considerados capitais, o envelhecimento é experimentado como uma fase de perdas ainda maiores.

Já na cultura alemã, em que diferentes capitais têm mais valor, a velhice pode ser uma fase de realizações e de extrema liberdade.

Como ressaltou Simone de Beauvoir, "a última idade" pode ser uma liberação para as mulheres, que, "submetidas durante toda a vida ao marido e dedicadas aos filhos, podem, enfim preocupar-se consigo mesmas".

MIRIAN GOLDENBERG, antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "Coroas: Corpo, Envelhecimento, Casamento e Infidelidade" (ed. Record). Seu site é www.miriangoldenberg.com.br e seu e-mail é miriangoldenberg@uol.com.br.

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Em São Paulo, 1º de Junho de 2010

Infidelidade na Internet

Assunto interessante e bem tratado. Já discuti essa questão aqui neste Space.

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Folha de S. Paulo
25 de Maio de 2010

Seção “Coisas Loucas”

Marion Minerbo

Infidelidade na internet


Relações virtuais são desconcertantes porque dissolvem as fronteiras entre fantasia e realidade


OS SITES DE RELACIONAMENTO, por serem um espaço de sociabilidade híbrido, ao mesmo tempo real e virtual, podem deixar as pessoas desconcertadas com relação a quem são, onde estão e fazendo o quê. O sexo virtual exemplifica bem essa ambiguidade. Enquanto a mulher dorme, o marido passa a noite em um programa de chat com câmera na internet.

Na tela, uma mulher tira a roupa e lhe diz coisas sensuais. Ela vive em outro país. Ambos se masturbam enquanto olham para seus computadores. O homem traiu sua mulher? Cada um terá uma opinião, dependendo de seus valores e de como avalia a situação.

A mulher pode sentir que foi traída, porque o marido desejou outra e gozou com essa outra. E pode sentir que não o foi, porque a relação é virtual e eles nunca se encontraram.

Pode entender que a imagem da tela foi usada, como revista masculina, para inspirar fantasias eróticas. Por outro lado, não pode negar que essa imagem interagiu, contribuindo para tornar a fantasia mais real.

Ou seja, apesar de virtual, a mulher na tela é bem real. Ao mesmo tempo, a mulher sabe que a rival virtual é fruto da imaginação do marido; se ele a conhecesse na realidade, dificilmente ela corresponderia por muito tempo à figura idealizada criada pelo homem.

As relações virtuais podem ser desconcertantes porque embaralham e dissolvem as fronteiras -que imaginávamos perfeitamente nítidas- entre fantasia e realidade. Se a mulher acusar o marido de tê-la traído, terá razão. E, se ele lhe responder que aquela mulher não existe, também terá razão. A realidade psíquica tem mais força de convicção do que a realidade material.

Em geral, temos mais medo dos fantasmas que criamos do que de perigos reais. As relações virtuais denunciam, por levar ao extremo, quanto de fantasia permeia aquilo que pensávamos ser pura realidade. Principalmente o sexo.

Um homem pode não desejar a mulher maravilhosa com quem está se não puder criá-la, em alguma medida, a partir de sua fantasia.

E pode desejar ardentemente a mulher virtual na qual jamais tocará justamente porque não pode tê-la na realidade. Em casos extremos, a paixão virtual pode se prolongar por anos e não haverá mulher real capaz de competir com sua fantasia.

Marion Minerbo
marion.minerbo@terra.com.br

Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Neurose e Não-Neurose" (ed. Casa do Psicólogo)

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Em São Paulo, 25 de Maio de 2010

Está certo: Elas são o sexo forte

Está certo o Drauzio Varella. Elas são o sexo forte. Começam a falar mais cedo, constróem sentenças gramaticamente mais cedo, (falam mais, poderia acrescentar), ficam gente grande mais cedo, casam-se mais cedo, e, ao final, morrem mais tarde. Ou seja, tem vários anos em que ficam sozinhas para contar a versão delas da história. Conta melhor a história quem a conta por último.

Adiante, o artigo do Drauzio.

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Folha de S. Paulo
22 de Maio de 2010

DRAUZIO VARELLA

O sexo frágil


Aos dois anos, as meninas já constroem sentenças com sujeito, verbo e predicado


FICO ADMIRADO com a onipotência masculina.

Quando pequenos nos ensinaram que homem não chora, que Deus nos criou corajosos com a finalidade de protegermos as mulheres, coitadas, seres frágeis prestes a esvair-se em lágrimas à menor comoção. Como sobreviveriam elas não fosse a nossa existência?

Por acreditar cegamente nesses ensinamentos, assumimos o papel de legítimos representantes do sexo forte, mesmo que as evidências nos desmintam desde a mais tenra infância.

Não é exagero, leitor. As meninas começam a falar muito antes. Aos dois anos já constroem sentenças com sujeito, verbo e predicado, enquanto nessa idade mal conseguimos balbuciar meia dúzia de palavras que só a mamãe compreende.

Você dirá que somos mais ágeis e mais orientados espacialmente. E daí? Qual a vantagem de virar cambalhota e plantar bananeira?

O desenvolvimento intelectual delas é tão mais precoce que alguns neuropediatras consideram injusto colocar meninos e meninas de sete anos na mesma sala de aula: deveríamos ficar um ano para trás.

Na puberdade, elas viram mocinhas de formas e gestos graciosos. Nós nos transformamos em quimeras desengonçadas, metade criança, metade homem com penugem no bigode, espinhas em vez de barba, voz em falsete e loucura por futebol.

Não é a toa que as adolescentes suspiram pelos rapazes mais velhos e nem se dignam a olhar para nossa cara quando nos derretemos diante delas.

No casamento, somos feitos de gato e sapato. Podemos estar cobertos de razão, gritar, espernear e esbravejar -no fim a vontade delas prevalecerá. É guerra perdida. São donas de uma arma irresistível: a tenacidade para repetir cem vezes a mesma ladainha. Com o passar dos anos, aprendemos a fazer logo o que elas querem; sai mais em conta. Nós nos cansamos e desistimos de reivindicar um direito, elas jamais.

Faça um teste. Combine com um amigo um jantar com as mulheres sem falar com elas. A chance de dar certo é zero. Agora inverta, as duas mulheres marcam uma noite para o tal jantar sem avisá-los. Você chega em casa louco para vestir o bermudão e ver seu time na TV. Qual a probabilidade de a televisão passar a noite desligada?

Você dirá que pelo menos somos mais saudáveis, enquanto elas vivem cheias de achaques. De fato, nas mulheres a cabeça dói, o útero incomoda e o intestino não funciona, mas as desvantagens acabam aí.

Durante o desenvolvimento embrionário, para construirmos ossos mais robustos e músculos mais potentes, desviamos parte da energia que seria utilizada para fortalecer o sistema imunológico. Por essa razão, em todas as sociedades o homem está mais sujeito a processos infecciosos graves.

No Brasil, arcamos com mais de 60% da mortalidade geral. A cada três pessoas que perdem a vida, duas são do sexo masculino.

Os ataques cardíacos vêm em primeiro lugar. Começamos a correr risco a partir dos 45 anos; as mulheres, só ao atingir a menopausa. Depois vêm os derrames cerebrais, seguidos pelos homicídios. Essa distribuição se repete em todas as regiões do país.

Fumamos e bebemos muito mais. Perto de 90% dos óbitos por acidentes de trânsito, quedas e afogamentos causados pelo abuso de álcool ocorrem entre nós.
Somos mais sedentários e desleixados com a saúde. Tratamos o corpo a pontapé e fugimos dos exames preventivos como o diabo da cruz. Ir ao médico? Só quando chegarmos às últimas ou se for para ficarmos livres da insistência das mulheres que nos cercam.

Em condições sociais comparáveis, mulheres vivem mais do que homens em todos os países do mundo. No Brasil, nossas vidas duram, em média, 7,6 anos menos. A longevidade feminina é visível: compare o número de viúvas com o de viúvos que você conhece.

Ao perder a companheira, o homem de idade fica desamparado. Se não casar imediatamente e não tiver filhas ou irmãs por perto, estará perdido, é incapaz de pregar um botão ou de fritar um ovo. Na situação contrária, a mulher poderá sofrer, sentir falta, mas cuidará da rotina doméstica sem dificuldade.

Morreremos mais cedo e deixaremos nossas economias. Livres da repressão machista e do trabalho que lhes dávamos, elas terão 7,6 anos para fazer excursões turísticas e lotar vans para ir a shoppings e teatros, animadas e conversadeiras. Para muitas, não será fácil esconder o ar de felicidade plena.

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Transcrito em São Paulo, 22 de Maio de  2010
(Último dia em nosso apartamento atual: terminamos de mudar hoje à tarde)