Que bicho complicado é o ser humano… – 2

[A seguir, uma troca de mensagens entre mim e Antonio Morales, na lista LivreMente. A mensagem dele é transcrita na íntegra com sua autorização.]

Caro Morales:

No mercado, tudo está a venda que os seus proprietários estejam dispostos a vender.

A noção de que eu posso vender o meu corpo reafirma a minha propriedade sobre ele. Não fosse ele minha propriedade, não poderia vendê-lo (na realidade, o termo "vender" aqui é inadequado: o certo seria "alugar", porque o/a prostituto/a que "vende" o corpo na realidade apenas o aluga momentaneamente, tão somente cede o direito de uso por alguns instantes).

Como liberal, defendo a liberdade de as pessoas se prostituirem porque afirmo o direito de o ser humano dispor do que é seu como melhor lhe aprouver. Reconheço-lhe até mesmo o direito de pôr fim à própria vida. Por que não iria lhe reconhecer o direito de prostituir-se?

Quando a gente tem um direito, cabe a cada um de nós decidir se o vai exercer o não. Com o direito, que sustenta a liberdade, vem a responsabilidade. É aí que entra a moralidade. Ela não existe sem responsabilidade que, por sua vez, não existe sem liberdade. Só se vende quem é livre para fazê-lo. Mas, também, só se vende quem, depois de analisar as condições propostas, decide que elas são aceitáveis.

Não vejo, Morales, em que o dinheiro atropele a resistência moral. O problema é que a capacidade de as pessoas resistirem, com base em considerações morais, a propostas financeiras como à do filme, é muito pequena. E essa capacidade é pequena porque nossa formação geral, inclusive moral, é fraca, quase ao ponto da nulidade.

Você parece preferir, à sociedade liberal, uma em que as pessoas não tenham a liberdade de se vender, de comercializar o próprio corpo. Tudo bem, numa sociedade assim talvez menos pessoas o vendessem — mas seria por mérito moral maior ou simplesmente por falta de oportunidade?

No filme, o dinheiro no fim não ficou com nenhum dos dois — ambos abriram mão dele. O problema não estava no dinheiro: estava na dificuldade de tomar decisões livres e responsáveis e conviver com elas.

Qualquer indivíduo pode, voluntariamente, vender-se ou até mesmo dar-se como escravo, temporária ou permanentemente. Corpo ou alma. Uma passagem do Evangelho me vem à mente: "Não temais aqueles que matam o corpo mas não podem matar a alma", algo assim. De certo modo concordo com o Evangelho:

acho a prostituição da alma (embora um direito, como a do corpo) mais moralmente condenável do que a prostituição do corpo.

Conheço várias pessoas que voluntariamente venderam sua mente ao Partido Comunista, ou a Marx, ou à Internacional Socialita, ou à Igreja, à TFP, ou seja lá a que outra organização. É um direito seu. Posso lastimar seu julgamento, mas não questiono seu direito.

Escravizam-se, voluntariamente, não só os que vendem o seu corpo, mas, também, os que entregam sua alma a terceiros, com ou sem pagamento… Os que deixam a igreja, o partido, ou o equivalente, determinar o que pensam, o que desejam, aquilo pelo que lutam, perdem a própria alma. E a sujeira da alma não se limpa com um simples banho bem tomado.

Uns, de mente e moral fraca, não têm a menor dificuldade de vir a pensar, desejar e agir da forma que a igreja, o partido, ou o equivalente determinam.

Outros, de mente mais forte, mas de moral fraca, prostituem sua mente ao defender a linha oficial da igreja, do partido, ou do equivalente, SEM ACREDITAR NELA…

Outros, de mente e de moral fortes, simplesmente se recusam a prostituir a própria mente: não a vendem, nem mesmo a alugam — nem, muito menos, dão de graça aquilo que é seu.

From: livremente@yahoogrupos.com.br – On Behalf Of Antonio Morales
Sent: Sunday, March 30, 2008 12:34
To: livremente@yahoogrupos.com.br
Subject: Re: [LivreMente] Que bicho complicado e’ o ser humano

Assisti todos os filmes que relacionou.

A temática é interessante. Seu comentário sobre Proposta Indecente é ótimo.

Só gostaria de acrescentar um aspecto que foi desprezado por você mas que considero ter bastante relevância.

Resguardado o aspecto de que os seres humanos são complexos, o fato é que eles são transformados em mercadoria numa sociedade em que tudo nisso se torna.

A resistência moral é atropelada pelo dinheiro e transformada em pó perante ele. Mas, claro, isso não impede que essa miséria moral destrua as pessoas e o relaciomento entre elas.

Tanto homens como mulheres podem ses vítimas desse processo, que, claro, os atinge de diferentes maneiras.

O que quero dizer que a questão moral é irrelevante para o mundo das mercadorias e suas imposições. Esse é o inferno que é criado todos os dias, com grandes ou pequenos dramas e que nos envolve impiedosamente.

antonio morales

Em Campinas, 30 de Março de 2008

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