Liberdade, Direitos e Deveres
Talvez a característica mais marcante do pensamento liberal clássico seja sua insistência na tese de que nossa liberdade está alicerçada no reconhecimento de direitos, pertencentes e inerentes ao indivíduo, que não são concedidos pelo Estado e que, portanto, nem o Estado pode abolir — embora lhe compita garanti-los.
São estes os direitos reconhecidos pelo liberalismo para cada indivíduo:
* o direito à vida
* o direito à segurança (da própria pessoa e de seus bens)
* o direito à liberdade
O direito à liberdade se desdobra em vários direitos:
* o direito à livre expressão (de opiniões, de estilos de vida)
* o direito à livre locomoção (de ir e vir)
* o direito à livre associação (com quem concorde em se associar com ele)
* o direito à ação na busca de sua felicidade (da forma que lhe parecer mais adequada)
* o direito à propriedade (de terra, bens e dinheiro — os meios de se buscar a felicidade)
Esses direitos são considerados naturais pelo pensamento liberal porque eles nos pertencem simplesmente em virtude de sermos seres humanos — não em virtde de sermos cidadãos deste ou daquele país. Sendo naturais, nascemos e morremos com eles: por isso, são também imprescritíveis e inalienáveis. Se eles não forem observados, não teremos condições de nos manter e sobreviver, muito menos de viver a vida que escolhemos viver, como seres racionais e livres.
Cada direito que eu tenho (ou que qualquer pessoa tem) impõe um dever a todos os demais seres humanos.
No caso dos chamados direitos individuais, o dever imposto a todos os demais seres humanos é um dever negativo: o dever de não interferir com meus direitos. Esse é um dever "negativo", pois se trata de um dever de não-agir, de inagir. Assim, se alguém está interferindo com o meu direito de expressão, ou por me obrigar a me expressar, quando não quero, ou por me impedir de me expressar, quando desejo fazê-lo, eu posso, num país livre, chamar a polícia para que ela obrigue esse alguém a parar de interferir com meu direito de expressão.
É por isso que as liberdades que correspondem a esses direitos — liberdade de expressão, locomoção, associação, propriedade, ação — são chamadas de liberdades negativas (ou formais). Eu sou livre para me expressar ou agir quando ninguém me impede de fazê-lo. Não é necessário, para que eu tenha liberdade de expressão ou ação, que alguém me dê um microfone, ou um palanque, ou uma estação de rádio, ou uma estação de televisão, ou um jornal, ou uma editora, ou um site na Internet. Isso cabe a mim conquistar, se concluir que preciso desses meios para ser feliz — isto é, para viver a vida que, racional e livremente, escolhi para mim.
Pensadores de esquerda inventaram, porém, há pouco tempo (é bom que se diga), uma outra modalidade de direitos: os chamados direitos sociais, que envolveriam o direito à educação, o direito ao tratamento de saúde, o direito à moradia, o direito ao transporte, o direito ao emprego, o direito à aposentadoria, o direito a uma remuneração mínima e digna (mesmo na ausência de emprego), e não sei quantos mais direitos (o número aumenta a cada dia e com assustadora rapidez). Afirmam eles que os direitos individuais (a que correspondem as liberdades negativas ou formais) defendidos pelos liberais de pouco valem sem esses novos direitos. Na verdade, alguns chegam a chamar os direitos de expressão, locomoção, associação, propriedade e ação de "direitos burgueses" — considerando essa expressão uma expressão pejorativa.
Mas há um problema sério com esses alegados direitos sociais. Se eles são de fato direitos (como alegam os pensadores de esquerda), eles devem impor um dever correspondente sobre todos os seres humanos e sobre cada um deles, individualmente. Assim, se alguém tem direito a educação ou a tratamento médico, e não os está recebendo, alguém tem o dever de provê-los; se alguém tem direito ao emprego e está desempregado, alguém tem a obrigação de lhe dar um emprego ou de lhe pagar uma remuneração digna à guisa de seguro desemprego (mesmo que ele nunca tenha feito tal seguro) ou à guisa de renda mínima que todo ser humano deve ter, mesmo que desempregado.
Mas quem é esse alguém que tem tais deveres? Você? Se alguém estiver com câncer ou com AIDS e bater à sua porta exigindo que você cumpra o seu dever de lhe dar tratamento médico, você reconhecerá esse dever e fará isso? Se alguém estiver desempregado e bater à sua porta exigindo que você cumpra o seu dever de lhe dar um emprego ou uma remuneração digna enquanto estiver desempregado, você reconhecerá esse dever e fará isso?
Dificilmente.
As pessoas em geral não reconhecem que esses deveres recaiam sobre elas, individualmente. Entretanto, muitos alegam que esses deveres recaem sobre o governo. Mas o governo não tem um centavo que não seja confiscado de você ou de mim — e confiscado quer dizer tomado pela força, pois se não pagarmos nossos impostos, seremos presos. Assim, se é o governo que tem o dever de dar cobertura a todos os direitos sociais, em última instância somos você e eu que o estaremos fazendo, através de nossos impostos.
Mas pode ser que nem você nem eu queiramos fazer isso — ou queiramos ser obrigados a fazer isso. Pode ser que você e eu concordemos que há muitas pessoas que, se receberem uma remuneração sem trabalhar, não vão procurar emprego muito seriamente. Pode ser que você e eu discordemos de um estatista (não confundir com estadista) como Cristóvam Buarque que acha que toda mulher com filhos, trabalhadora ou desempregada, seja remunerada, sem trabalhar, para que crie os filhos, até que eles passem de cinco anos, achando que, se mais esse suposto direito social vier a ser reconhecido, vai haver muita gente que vai fazer de ter filhos uma profissão (como já acontece nos Estados Unidos, em que mães solteiras recebem casa e alimentação gratuita do governo) — e que a conta vai bater no seu e no meu bolso… [Vide minha nota sobre a proposta de Cristóvam Buarque, abaixo].
Os chamados direitos sociais, portanto, não são direitos, porque eles impõem a terceiros deveres positivos, ou seja, o dever de agir de diferentes formas (e não apenas de não interferir), dever esse que viola a sua liberdade de ação e o seu direito à propriedade de seu próprio dinheiro. Não pode haver um direito que, para ser implementado, envolva a violação das liberdades básicas e dos direitos de outra pessoa.
Liberdades: As Negativas (Formais) e as Assim-chamadas Positivas (Substantivas)
No sentido tradicional do termo, liberdade quer dizer liberdade negativa ou formal. Nesse sentido, uma pessoa é livre se ela não é coagida por outras pessoas, isto é, se não é obrigada a agir, ou constrangida a deixar de agir, por terceiros.
O que recentemente veio a ser chamado de "liberdade positiva" ou "liberdade substantiva" (ou, às vezes, com muita "cara de pau", "liberdade real", como se a outra não fosse), é algo que está muito mais próximo de “capacidade, habilidade, meios, recursos, poder ou possibilidade real” do que de liberdade.
É óbvio que qualquer pessoa, no Brasil, é livre para, por exemplo, comprar uma mansão no Morumbi — livre no sentido de que ninguém a obriga a, ou impede de, comprar uma mansão no Morumbi. Como também é óbvio que muitas pessoas não têm meios ou recursos financeiros para comprar uma mansão no Morumbi, alguns filósofos (geralmente de esquerda) resolveram, arbitrariamente, negar que essas
pessoas sejam livres para comprar a referida mansão.
Foi assim que surgiu a noção de "liberdade positiva" ou "liberdade substancial". Ser livre, nesse sentido, é poder (isto é, ter meios ou recursos, capacidade ou habilidade, possibilidade real de) fazer aquilo que se deseja fazer.
Outro exemplo. É óbvio que qualquer pessoa, no Brasil, é livre para, por exemplo, obter um doutorado na USP — livre no sentido de que ninguém a obriga a, ou impede de, fazer esse doutorado. Mas também é óbvio que muitas pessoas não conseguem fazer esse doutorado porque não têm capacidade ou preparo suficiente para ser aprovada nos processos seletivos. Em decorrência disso, muitos filósofos (em geral de esquerda) negam, de maneira arbitrária, que essas pessoas sejam livres para fazer esse doutorado.
Por que afirmou que os defensores da liberdade positiva ou substantiva sejam arbitrários na sua conceituação de liberdade?
A resposta básica é que a aquisição de uma mansão no Morumbi ou o acesso a um doutorado da USP é livre. Que a aquisição e o acesso são livres quer dizer que ninguém é obrigado a, ou impedido de, se valer deles. Ser livre, porém, não quer dizer que todos precisam ser capazes de fazer essa aquisição ou de aceder a esse doutorado. A liberdade, no caso, é uma condição, extremamente importante (na verdade, sine qua non), para que alguém possa fazer alguma coisa — mas não é condição suficiente. Para que as pessoas possam fazer uso dessa liberdade, elas precisam cumprir outras condições: ter dinheiro suficiente (no caso da mansão) ou ter capacidade e preparo (no caso do doutorado) — ou, talvez, ainda alguma outra coisa.
Que as pessoas não sejam igualmente ricas ou igualmente capazes ou preparadas pode ser algo a ser lamentado — mas não significa que sejam menos livres.
Cortland, OH, 14 de Janeiro de 2005 (Transcrição de algo escrito em 16 de Fevereiro de 2002 em outro blog meu)